segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Para além de culpados e inocentes: algumas reflexões sobre as relações entre aluno e professor sob a perspectiva do fracasso escolar





No decorrer das aulas de Contextos Educacionais (disciplina do curso de psicologia), pude vivenciar uma prática de observação que me colocou diante de algumas questões que me levaram a refletir sobre as possíveis causas do fracasso escolar.
A instituição escolar que visitei apresentava uma infra-estrutura de ótima qualidade. Uma vez que a mesma continha ambientes espaçosos, desde a área de alimentação até aquela em que os educandos praticam atividades físicas e esportivas. Além do mais, a referida escola, por ser de dois andares, ao invés de fazer uso de escadas, optou por rampas. Fato este considerado de suma importância, já que assim a presente instituição tem condições de incluir aqueles alunos que fazem uso de cadeira de rodas.
Partindo para a observação, propriamente dita, a aula que presenciei foi a de matemática. A mesma se iniciou a partir de uma correção de exercícios. Desse modo, o professor utilizou como principal recurso metodológico o quadro de giz e o livro didático (o qual grande parte dos alunos o possuía). No decorrer da aula eram sempre os mesmos alunos que respondiam as questões que eram propostas pelo professor. Quanto aos demais escolares, os mesmos pareciam dispersos e se inquietavam por qualquer motivo (a chamada feita pelo professor, a comunicação das notas semestrais, por exemplo).
Percebi também que o desinteresse por parte do professor em fazer uso de recursos didáticos que chamassem a atenção dos alunos e, ao mesmo tempo, fossem condizentes com o contexto em que esses escolares se encontram inseridos (apenas no final da aula, ao iniciar um novo conteúdo é que o professor apontou exemplos do cotidiano para explicar a teoria da probabilidade). Nessa mesma direção também é pertinente afirmar que os educandos também se mostravam, de uma forma geral, desinteressados, alheios ao conteúdo ensinado.
Mas, por que os escolares pareciam desinteressados? Seria, em virtude, da forma como o professor conduzia sua aula? Os seus recursos metodológicos? Da mesma forma, também devemos nos indagar, o porquê da falta de motivação por parte do professor. Seriam as altas e exaustivas jornadas de trabalho? Os parcos salários que o mesmo recebe? A insuficiente e precária valorização que os nossos governantes oferecem a ele? Pois, conforme a própria palavra de tal professor aquela turma era “a pior da escola”.
Na direção de tais preocupações, este trabalho tem como objetivo tecer algumas reflexões acerca das possíveis causas do fracasso escolar, tomando como ponto de partida o referencial teórico-conceitual da psicologia e em especial da psicologia escolar.
Como se sabe, a psicologia irá se sistematizar enquanto ciência no decorrer do século XIX. Século este marcado pela ascensão do capitalismo, de uma nova classe social (a burguesia), e também de ideologias liberais. Como diria um chavão para historiadores, cuja autoria geralmente é destinada a Lucien Febvre, “toda filosofia é filha de seu tempo”. Sendo assim, não foi nada fortuito a psicologia ter nascido justamente sob a égide do liberalismo. Mas, o que vem a ser tal ideologia?


O liberalismo, como visão de mundo, está fundamentado na idéia de que cada homem é um ser moral, possuidor de direitos inalienáveis, que lhe são dados pela sua própria condição de homem. Dotado de potencialidades, o homem deve ser livre para desenvolvê-las. Daí a decorrência da valorização do individualismo em detrimento do reconhecimento da totalidade social. (BOCK, 2000, p. 18).




A partir dessa visão de mundo e de homem o liberalismo tenta camuflar a realidade social, na medida em que constrói a idéia de um ser humano a priori (naturalizada) e que seria através de seus próprios esforços é que o mesmo conseguiria “progredir”, “evoluir” (aqui também é perceptível a influencia do positivismo).
Através dessa perspectiva que a psicologia e, de um modo especial, a psicologia escolar irão criar possíveis argumentos quanto ao fracasso escolar, durante o final do século XIX e até o final da década de 70 do século XX. Em outras palavras:


A história das explicações do chamado “fracasso escolar” das crianças das classes populares é feita de uma seqüência de idéias que, em linhas gerais, pode ser assim resumida: na virada do século, explicações de cunho racista e médico; a partir dos anos trinta, até meados dos anos setenta, as explicações de natureza biopsicológica – problemas físicos e sensoriais, intelectuais e neurológicos, emocionais e de ajustamento; dos primeiros anos da década de setenta até recentemente (mais ainda predominante nos meios escolares), a chamada teoria da carência cultural [...] (PATTO, 1992, p.108).


Seguindo ainda o raciocínio de Patto (1992), no mundo da “carreira aberta ao talento” venceriam os “mais aptos”, afirmava o darwinismo social: nesta linha argumentativa, diferenças individuais ou grupais de capacidade estariam por trás das diferenças sociais. Ora, é com este olhar que devemos compreender o fato de que a psicologia ao analisar o fracasso escolar se voltava para questões naturais e biológicas. Assim, o problema sempre se encontrava no indivíduo e não em um contexto social e histórico maior. Nesse sentido, a psicologia, juntamente com suas teorias, será um instrumento ideológico imprescindível para que o capitalismo criasse e elaborasse justificativas a fim de explicar as desigualdades sociais. Desse modo, “a única pergunta possível ao psicólogo refere-se a “porque os indivíduos não aprendem”, apontando para uma ausência de compromisso da Psicologia com a condição multideterminada das circunstâncias nas quais os indivíduos se humanizam” (MEIRA & TANAMACHI, 2003, p.15).
Somente na década de 80 do século XX, é que uma série de críticas vai se delinear em relação ao que foi dito anteriormente. Propondo, assim, novas compreensões para o fracasso escolar, das supostas classes economicamente “desfavorecidas” e, ao mesmo tempo, uma nova inserção do psicólogo no interior do espaço escolar.
Assim, uma concepção crítica da psicologia escolar rompe com o determinismo histórico ao enfatizar a idéia de que não existe um homem a priori, unilateral. Pelo contrário, esses homens e mulheres irão se constituir a partir de suas relações/interações sociais. Ou seja, o contexto histórico em que esse indivíduo se encontra inserido tem muito a dizer sobre o mesmo. Sendo assim, estamos nos reportando a uma visão sócio-histórica, onde se incorpora uma perspectiva de:


[...] homem histórico, isto é, um ser constituído no seu movimento: constituído ao longo do tempo, pelas relações sociais, pelas condições sociais e culturais engendradas pela humanidade. Um ser que tem características forjadas pelo tempo, pela sociedade e pelas relações (BOCK, 2000, p.24).



Na direção de tais preocupações, o fracasso escolar não pode ser entendido apenas do ponto de vista individual, isto é, culpabilizando tão somente o escolar ou tão somente o professor. Uma vez que, o fracasso escolar é fruto de um contexto social maior que perpassa por relações de uma ordem e de uma dimensão que vão além do aluno e do professor. Pois, o processo de ensino-aprendizagem deve de se tornar inteligível a partir de uma concepção teórica que:


[...] nos permita analisar o processo de escolarização e não os problemas de aprendizagem desloca o eixo da análise do indivíduo para a escola e o conjunto de relações institucionais, históricas, psicológicas, pedagógicas que se fazem presentes e constituem o dia-a-dia escolar. Ou seja, os aspectos psicológicos são parte do complexo universo da escola, encontrando-se imbricados nas múltiplas relações que se estabelecem no processo pedagógico e institucional nele presentes. Tal concepção rompe com as explicações tradicionais sobre o fracasso escolar, mudando o foco do olhar de aspectos apenas psicológicos para a análise do individuo e suas relações institucionais (PROENÇA, 2002, p. 192).




Através dessas novas abordagens, o processo de ensino-aprendizagem deve ser encarado levando-se em consideração uma análise dialética e multifatorial. Dialética, porque se estamos nos referindo ao ensino-aprendizagem, estamos nos aludindo a respeito de algo que ocorre de forma recíproca e mútua, onde tanto o educando como também o educador são responsáveis pelo fracasso ou pelo sucesso de tal pressuposto. Multifatorial, por sua vez, porque como já foi salientado o “problema” deve ser deslocado do indivíduo para um contexto maior, que englobe o político, o social, o econômico, o projeto político pedagógico da escola, dentre outros. É nesse sentido, que se torna possível falar em processo de escolarização, em detrimento de problemas de aprendizagem. Uma vez que, os supostos “problemas de aprendizagem” sempre foram usados como um instrumento ideológico pelas classes dominantes, a fim de mascarar e camuflar a realidade social brasileira. Logo:


[...] os problemas de aprendizagem incidem maciçamente sobre as crianças das classes populares, e é sobre elas que durante décadas recaem as explicações a respeito dos chamados problemas de aprendizagem: ou porque apresentam problemas psicológicos, biológicos ou, mais recentemente, culturais. Além disso, analisa o caráter ideológico e repleto de equívocos presentes nessas explicações, resultado de concepções preconceituosas a respeito do pobre e da pobreza no Brasil (PROENÇA, 2002, p.193).


Portanto, cabe ao profissional de psicologia, em especial ao da psicologia escolar, colocar em voga essas novas concepções e, ao mesmo tempo, atribuir um novo sentido para o processo educacional no interior do espaço escolar. Contribuindo, dessa forma, para a formação e constituição de uma realidade social mais justa, digna e humana, onde as desigualdades sociais não sejam ignoradas e/ou camufladas. Mas, sim compreendidas para que os educandos de hoje, futuros adultos (conscientes) de amanhã, possam vir a criar possíveis alternativas de saná-las.

Fernanda Caroline de Melo Rodrigues é graduada em História pelo Unipam e graduanda em Psicologia pela mesma instituição.

Referências:

ANTUNES, Mitisuko Aparecida Makino; MEIRA, Marisa Eugênia Melillo. Psicologia escolar: Práticas críticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

BOCK, A. M. B. As influencias do Barão de Munchhausen na Psicologia da Educação. In: TANAMACHI, E.; PROENÇA, M.; ROCHA, M. Psicologia e educação: desafios teórico-práticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.p.11-31.

PATTO, M.H.S. A família pobre e a escola pública: anotações sobre um desencontro. Psicologia USP. São Paulo 3 (1/2), 1992. p.107-121.

SOUZA, M. P. R. Problemas de aprendizagem ou problemas de escolarização? Repensando o cotidiano escolar à luz da perspectiva histórico-crítica em psicologia. In: Trento, D. ; Kohl, M; Rego T.. (Org.). Psicologia, Educação e as Temáticas da Vida contemporânea. 1 a. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2002. p.177-196.

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