sábado, 15 de dezembro de 2012

Razão, Paixão e Anarquismo*



 Em primeiro lugar, algumas definições sobre o que é ANARQUISMO. É necessário clarear alguns conceitos como anarquia, poder, governo e socialismo. Anarquia significa ausência de poder ou de autoridade constituída. Há uma diferença sutil no discurso, mas importante na realidade, entre poder político e poder social. O primeiro exerce o poder de coação: uma ou mais pessoas têm o poder de obrigar outras a fazer o que não desejam. Ocupam os governos do Estado, o KRATOS, o poder político no sentido grego, qualquer que seja a sua forma, teocracia, aristocracia, monarquia, oligarquia, democracia, em todas as suas instâncias. É contra este poder hipertrofiado nos Estados Nacionais modernos que os anarquistas lutam hoje. Os anarquistas sabem e todos os estudos históricos o demonstram que o exercício deste poder sempre corrompe seus detentores, que acabam exercendo-o em benefício próprio, de uma forma ou de outra, em diferentes graus, sempre em detrimento do povo.
    O outro poder, o poder social, é participado, exercido por todos nas decisões coletivas: o poder de uma assembléia de tomar decisões. Exemplo de proporções enormes foi o poder que tinha a CNT espanhola, com milhões de afiliados, durante a Guerra Civil, de decidir pela organização autogestionária e pelas experiências práticas do anarquismo durante a revolução. É o poder que é exercido por todos em qualquer prática autogestionária, nas decisões realmente coletivas.
    O termo Governo tem o sentido de autoridade diretora e o sentido restrito é o de governo político, centralizador do KRATOS social. Mas, por extensão, tem o sentido de gestão, organização, ordenamento. A expressão “desgoverno” (avião ou carro desgovernado) tem o sentido de desorganização e é análoga ao sentido pejorativo de anarquia. A proposta anarquista é pela organização e, neste sentido, pelo autogoverno, como sinônimo de autogestão.
    Não há expressão mais aviltada do que o termo SOCIALISMO. Assim como para a imensa maioria das pessoas é inconcebível as sociedades humanas se organizarem sem Estado, tal a desinformação, para a maioria das pessoas, socialismo passou a ser sinônimo de estatização. Intelectuais das mais variadas tendências, nas universidades, na imprensa escrita e em todos os meios de comunicação repetem a mesma pregação. Tudo o que se refere a socialismo passa pelo Estado.
    Quando dizemos que o anarquismo é antes de tudo sinônimo de socialismo, temos que dar um mínimo de clareza ao nosso conceito de socialismo: daí a expressão socialismo libertário. Socializar é tomar a propriedade e os instrumentos de trabalho, enfim toda a riqueza e o que a produz, disponível à sociedade, acabando com a exploração do homem sobre o homem. Mas, para o socialismo libertário, não basta socializar os bens materiais: é preciso socializar o saber, a informação e todos os bens culturais. Mas, o que é fundamental, jamais haverá socialismo se não fizer a socialização do poder – a primeira coisa a ser socializada é o poder, que começa com a autogestão das lutas. Destruir o poder político e fortalecer o poder social, eis o que significa autogestão, a real igualdade e liberdade em todo o processo de transformação.
    O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de fé, tábuas da lei, com profetas, com excomunhões, processos de heresia e sanções. É antes um conjunto de doutrinas e princípios cujos postulados básicos são convergentes, e que está sempre aberto a novas contribuições. Estes postulados básicos formam um fundo comum que, no amplo universo das múltiplas e alternativas atividades libertárias, são o anarquismo propriamente dito.
    O sentido de justiça e equidade, a revolta contra a exploração econômica do homem pelo homem e o combate ao Estado – com a consciência plena de que é a instituição que garante o regime de exploração e privilégio como fonte geradora de opressão e violência sobre o indivíduo e a coletividade – têm a liberdade como um dos mais altos valores humanos; liberdade e autonomia plenas a partir do indivíduo para a associação livre fundada na solidariedade e no apóio mútuo.
    O anarquismo combate todas as formas de autoritarismo, combate todo o poder de coação, tudo o que restringe, limita, sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano.
    Todo o ser humano tem a necessidade de desenvolver seu físico e sua mente em graus e formas indeterminadas; todo o ser humano tem o direito de satisfazer livremente essa necessidade de desenvolvimento; todos os seres humanos podem satisfazer essas necessidades por meio da cooperação e da vida associativa voluntariamente aceita. Cada indivíduo nasce com determinadas condições de desenvolvimento. Pelo fato de nascer com aquelas condições tem necessidades – em termos políticos, tem o direito – de se desenvolver livremente. Sejam quais forem suas condições, ele terá a tendência de se expandir integralmente. Ele terá o desejo de conhecer, saber, exercitar-se, gozar, sentir, pensar e agir com inteira liberdade. Esta necessidade é inerente ao próprio ser. Se o crescimento físico fosse limitado por qualquer meio artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Também a limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu desenvolvimento intelectual, moral e afetivo, anulando o seu potencial criativo seria lógico considerar-se uma monstruosidade. No capitalismo esse absurdo se dá em todas as instâncias da vida social e ninguém considera isso um absurdo, somente os anarquistas.
    A descentralização, a autonomia e o federalismo são as vias pelas quais o anarquismo propõe a construção de uma nova sociedade. A descentralização máxima é o indivíduo. Da plena liberdade e autonomia individuais para a organização segundo os interesses e as necessidades, para as instâncias mais complexas até a completa malha social, os princípios não se alteram. Começando pelo indivíduo como unidade celular da sociedade até o mais amplo tecido social, o princípio da autonomia está presente. Os interesses comuns de diferentes níveis e setores – profissionais, de produção de bens, planejamento, geográficos[1], etc. – resolvem-se pelas federações que as necessidades práticas indicarão. A união de interesses com objetivos comuns, sem quebra de autonomia, é a característica básica do federalismo. Assim, as uniões locais de organizam em nacionais até confederações internacionais.
    Em todos os atos, ante todos os fatos, o ser humano analisa, estima, aceita ou repudia o que se dá, o que acontece, formulando um juízo de valor. O tema é vastíssimo e seu estudo pertence à ontologia[2]. Apenas alguns conceitos para nos situarmos enquanto anarquistas. As vias de nosso conhecimento são a sensibilidade, a intelectualidade e a afetividade. Temos portanto uma intuição sensível, uma intuição intelectual e uma intuição páthica (do grego afeto, paixão). Há uma interatuação entre elas. Podemos racionalizar um sentimento de simpatia ou de antipatia[3], como podemos, através de uma dedução lógica, provocar a nossa santa fúria.
    Quase todos colocam os valores numa escala hierárquica: uns num grau mais elevado que outros[4]. O filósofo alemão MAX SCHELER (1874-1928) apresenta a seguinte ordem, que não é aceita por todos:

Valores religiosos (santo e profano)

Valores éticos (justo e injusto)

Valores estéticos (belo e feio)

Valores lógicos (verdade e falsidade)

Valores vitais (forte e fraco)

Valores utilitários (conveniente e inconveniente)

    Há variáveis, na subordinação dos valores, que se refletem de pessoa para pessoa ou até na mesma pessoa conforme o momento, mas sempre, na maioria das circunstâncias que a vida oferece, um prevalece sobre os outros[5]. Para o anarquista todos os valores se subordinam aos valores éticos, porque todos os atos humanos são passíveis de juízo ético.
    O que é ser anarquista? Ser anarquista é antes de tudo uma atitude ética. Ante a iniqüidade, um ímpeto de justiça leva o anarquista a romper racional e afetivamente com o sistema vigente. Romper com a autoridade é afirmar a própria independência humana. Ser anarquista é procurar realizar no quotidiano a plenitude do ato humano, e o ato humano só o é quando livre, fundado na vontade, no conhecimento dos fins e no poder de realizá-lo. Contra toda a desmoralização do ato humano, a luta anarquista não tem limites. Ser anarquista não tem limite. Ser anarquista é lutar pela liberdade de todos, tendo a consciência de que a liberdade dos outros aumenta a minha própria e não a limita.
   As paixões humanas [6] sempre foram objeto de estudo dos anarquistas. Apenas para ilustrar, vamos citar as teses apresentadas no 2°. Certâmen Socialista, realizado no dia 10 de novembro de 1889 no palácio de Belas Artes de Barcelona.
   Proposta do Círculo Operário de Barcelona: “Suponho uma sociedade verdadeiramente livre ou anarquista e sendo a instrução elevada ao grau máximo concebível, podem ser causas de desarmonia social as chamadas paixões humanas?” Foram apresentados seis trabalhos escritos sobre tal questão. No primeiro, apresentado por Teobaldo Nieva, é destacado o papel das paixões no desenvolvimento físico e mental da humanidade e como as religiões, as correntes filosóficas, os poderes político e econômico têm sufocado esta energia criadora. O autor se estende na crítica às religiões, a todas as formas autoritárias e repressivas e conclui que, apesar de tudo, elas continuam a ser a seiva vivificante da vida. As paixões são definidas e, ao contrário dos pecados capitais que são sete (orgulho, avareza, luxúria, etc.), as paixões são infinitas: o amor sexual, a paixão pelo belo, pela arte, pelo bem comum, etc. E, na sua essência, as paixões são benéficas, libertam. O desequilíbrio e as injustiças que o capitalismo e o autoritarismo provocam são as causas dos desvios e das práticas viciosas.
    Proposta do Centro de Amigos de Reus: “Benefícios ou prejuízos que a humanidade obteria adotando o amor livre”. Foram apresentados dois trabalhos, o primeiro de Soledad Gustavo. O trabalho começa acrescentando ao título a expressão “Em Plena Anarquia”. A autora considera que o amor livre na atual sociedade seria desastroso, uma desmoralização. Seria irrealizável. Uma sociedade plenamente livre e igualitária, perfeitamente justa teria como base de todas as liberdades a união livre dos sexos. Considera que só a comunidade assumindo a subsistência das mulheres e crianças resolveria o problema da dissolução das uniões. Só uma sociedade anarquista possibilitaria a escolha livre. Para a autora, a maioria considera o amor livre uma variedade de prazeres sensuais. Pura ignorância do que significa liberdade [7].
    Já Anselmo Lorenzo, em seu trabalho, faz uma incursão nas civilizações antigas rasteando as diferentes formas e costumes que envolvem a união dos sexos. Desde povos que viviam na mais absoluta promiscuidade, aos que adotaram a poligamia e a poliandria, até a monogamia e os padrões que regem o casamento na atual sociedade, para concluir que não se tem direito algum de afirmar que o conceito atual de casamento e família seja original, legítimo e unicamente natural. Havendo liberdade e igualdade os indivíduos e a sociedade se organizarão e praticarão a forma que mais lhes convier.
    A expressão amor livre, hoje eivada de conotações pejorativas, se confunde com a amizade colorida dos anos 70, por isso preferimos a expressão amor libertário [8]. Simplesmente a união de dois seres que se amam, sem injunção de espécie alguma. Sem interferência do Estado, da Igreja, da família, dos fatores econômicos, etc. sem preconceitos de espécie alguma. O amor sexual é como uma florescência da vida [9]. Suas práticas são tão diversas, tão diferentes seus graus de desenvolvimento, como imenso é o campo da afetividade. Impossível reduzir o amor a uma definição concreta. Impossível determiná-lo por condições particulares fixas. Nada mais variável. O amor sexual se apresenta sempre impregnado do sabor particular de cada associação humana; sujeito a normas, formalismos e rituais que variam com o organismo social. O amor sexual desprovido de ritualismos ridículos, fórmulas jurídicas, só será possível quando a sociedade tiver superado as contradições que a impedem de resolver os problemas que afetam as necessidades básicas das pessoas.
    A história do movimento anarquista é pontilhada de extremos de paixão e lucidez [10], de amor e de heroísmo, que seria impossível registrá-los todos aqui.
    Há no ser humano um desejo inerente de ir além, de ter uma vida diferente da que vive. Há assim um ímpeto utópico. O desejo de alcançar uma realidade que ainda não existe. Há as utopias de evasão, que expressam um desejo de afastamento da realidade vivida, que denominamos fuga da realidade, e há utopias de superação, que condensam desejos de alcançar estágios superiores ainda não vividos. Para que o homem alcance uma superação constante de si mesmo (o que seria a efetivação de uma revolução permanente não só em si, como também em seu meio) é necessária uma dose de utopia, porque sem o desejo de tornar tópicos os valores mais altos é impossível estimular a criação [11]. Os que julgam que o ímpeto utópico é uma fraqueza, resultado de uma deficiência humana, pouco sabem de psicologia.
    É preciso muito sonho, muito desejo, muita crença nas possibilidades de cada um e na de todos para que possamos superar obstáculos, vencer dificuldades, construir possibilidades remotas, tornar em ato o que parecia um sonho impossível.
    A história do anarquismo é, como dissemos, partilhada por estes atos de lucidez, paixão, heroísmo e amor que sempre foram e serão muito gratificantes para os que viveram tais momentos de plenitude libertária.

Jaime Cubero

Notas:

*Originalmente publicado na Revista “Libertárias”, São Paulo, nº4, Dez, p.64-68, 1998. Este artigo corresponde, em parte, a palestra proferida por Jaime Cubero na Universidade Federal de Uberlândia, em 01/12/1994, durante a inauguração do Nephispo (Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Política), coordenado, na época, pelas professoras Christina Roquette Lopreato e Jacy Alves de Seixas. Os originais deste artigo foram preparados por José Orsi Carlos Morel.

[1] Que vão desde o espaço físico das comunidades até a ecologia de grandes regiões.

[2] Axiologia (do grego axios = valor, valia + logos = teoria) é o termo atualmente utilizado para designar a teoria do valor, que investiga a natureza, a essência e os diversos aspectos que o valor pode tomar na especulação humana. Timologia (do grego tumh´= Avaliação + logos = teoria) é a disciplina que estuda o valor da avaliação, o valor extrínseco de alguma coisa. Ambas são disciplinas regionais da Ontologia. Dizemos que alguém faz valer algo, isto é, dá-lhe um valor, valoriza. Há uma frase do grande anarquista MAX STIRNER, que tem servido de lema para muitos anarquistas individualistas “...No limiar de nossa época não está gravada a antiga inscrição apolínea conhece-te a ti mesmo mas sim a nova inscrição faze valer a ti mesmo.

[3] No plano psicológico, nossos sentidos realizam sempre uma escolha entre diversos estímulos, recebendo apenas aqueles que correspondem aos esquemas sensório-motores e aos esquemas noéticos, intelectuais ou afetivos, racionais ou emocionais. Também no plano sociológico, os processos são os mesmos, desde as escolhas realizadas pelos indivíduos, que seguem normas afetivas, como na estruturação dos grupos sociais. O valor está presente em todos os atos que praticamos.

[4] Exemplos práticos da aceitação e predominância de alguns valores sobre os outros: valores mercantis e utilitários da nossa época (padrão desde a pré-infância); “Lei do Gerson”; ter em oposição ao ser.

[5] Todas as eras da Humanidade conheceram suas escalas de valores, ora predominando uns, ora outros. A classificação de SCHELLER pode ser ampliada, como muitos o fazem, ou até mesmo INVERTIDA. Para os socialistas autoritários, os marxistas, no ápice encontram-se os valores utilitários; para os anarquistas os valores éticos prevalecem sobre os demais; para os fascistas são os valores vitais e utilitários que predominam; para os cristãos, socialistas ou não, os religiosos.

[6] Todo o potencial criativo do ser humano é despertado por um impulso apaixonado, nas infinitas variáveis de sua manifestação. O último livro publicado de ROBERTO FREIRE, “Tesudos de Todo o Mundo: Uní-vos” é rico de exemplos deste aspecto.

[7] Não podemos esquecer que são conceitos emitidos em 1889, há 106 anos, quando a total dependência da mulher e dos filhos ao homem, em qualquer união conjugal, era objeto das discussões e de acerbas críticas dos anarquistas. Uma de suas trincheiras de propaganda. Hoje, em que pese todos os avanços e conquistas, a situação não mudou muito. A paternidade responsável e a solução para o problema das dissoluções conjugais só se verifica em casos isolados.

[8] Em uma palestra, na CASA DA SOMA, sobre amor livre, abordamos o assunto, juntamente com ROBERTO FREIRE e concluímos por essa conceituação. A expressão amor libertário é de ROBERTO FREIRE, a quem considero, entre os autores anarquistas que conheço, o maior e mais profundo na abordagem do tema, em termos atuais.

[9] O amor sexual permeia e influi no comportamento humano e nas ações políticas porque é intrínseco à natureza humana e está presente na história da humanidade.

[10] Citemos, entre muitos, os nomes de Louise MICHEL e de Emma GOLDMANN, os Mártires de Chicago, BAKUNIN, entre tantos, tantos outros. Bakunin, por exemplo, nos dá a seguinte definição de revolucionário: “... é aquele que, junto à inteligência, à energia, à lealdade e ao espírito de conspiração, possua também a paixão revolucionária e o diabo no corpo.” É literalmente impossível citar aqui os exemplos que transcendem todas as ideologias.

[11] Os antigos denominavam jubileu a indulgência plenária, solene e geral, concedida pelos papas aos católicos, nos primórdios do cristianismo, porque os homens tiravam de suas costas o peso do temor do castigo pelos pecados cometidos, ao livrarem-se das culpas. O termo tomou depois outros sentidos, mas mantém o conteúdo conceitual de satisfação plena, ou seja de uma profunda alegria. Não se trata de uma alegria qualquer, como certas alegrias passageiras, que deixam atrás de si uma marca sombria, até mesmo um rastro de tristeza. Trata-se do júbilo: uma das mais belas manifestações da paixão humana. Essa alegria, esse júbilo, é sempre excitante e criador de energias. O júbilo é predominantemente da intelectualidade e da afetividade implica um gozo mais profundo das coisas que almejamos. Para o anarquista, esta é a sua grande compensação.



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Estágio em Psicologia Escolar: relatando experiências





Introdução

Apresentação do estágio e do foco de intervenção

O Estágio Básico IV – foi realizado na área de Psicologia Escolar – na Escola Estadual Professora Elza Carneiro Franco (Polivalente), da cidade de Patos de Minas. Assim, realizamos um primeiro encontro com a professora que participa do processo de escolarização dos alunos do Tempo Integral. Este projeto é destinado às crianças cujos pais trabalham fora de casa o dia todo e diante disso deixam seus filhos na escola em tempo integral (manhã e tarde). Pela manhã, as crianças ficam todas juntas em uma mesma sala e desenvolvem diversas oficinas e são auxiliadas em relação ao “Dever de Casa”. À tarde as crianças vão para suas salas de origem.
A professora ainda disse que os estudantes formavam uma turma tanto de meninas, como também de meninos, entre seis a oito anos de idade, apenas alguns já sabiam ler e escrever e suas principais necessidades, ainda conforme ressaltou a professora, diziam respeito às seguintes questões: “eles necessitam de limites e valores em suas vidas, além de aprender hábitos relativos à higiene pessoal” (Sic).
Nesse sentido, realizamos dois encontros com as respectivas crianças (um no dia 02/03/2011 e outro no dia 16/03/2011), e ambos tiveram a duração de, aproximadamente, uma hora e meia. Em tais encontros, realizamos diversas atividades com os escolares e procuramos trabalhar com eles procedimentos lúdicos que envolvessem, basicamente, a questão dos limites e dos valores (respeito, companheirismo, educação, etc.) que eles deveriam ter frente aos colegas, professores, pais, dentre outras pessoas.

Teoria pertinente à área de intervenção

Os profissionais que atuam ou que ainda irão atuar em Psicologia, de um modo geral, ainda têm uma visão pré-concebida de que o consultório clínico constitui o espaço privilegiado para as demandas da população. Em se tratando de crianças com problemas de escolarização este paradigma merece um pouco mais de reflexões e elucidações.
Sendo assim, o psicólogo clínico diante de uma criança que é encaminhada por “supostamente” apresentar problemas de escolarização, irá quase que automaticamente, realizar um psicodiagnóstico que se pautem em questionários, testes psicológicos, além de verificar a condição econômica, social e cultural da família do aluno. Pois, esta segundo a teoria da carência cultural, por ser desestruturada, é a responsável pelo fracasso escolar de meninos e meninas. Diante disso o que fazer? Escrever laudos e mais laudos psicologizando e patologizando os estudantes, visto que a “origem” de seus problemas são meramente e tão somente intrapsíquicos, emocionais, inconscientes e não parte de uma estrutura mais ampla e plural?
Ao discutir a respeito  desse psicodiagnóstico, o objetivo não é o de desqualificá-lo. Pelo contrario, sabe-se que testes psicológicos, por exemplo, são importantes, mas não se pode ser reducionista e pensar que apenas eles e a família da criança vão ser capazes de justificar o fracasso escolar. Por isso, é bastante pertinente que os psicólogos conheçam a escola da qual o seu paciente faz parte. Assim, entram em cena, os professores, os colegas de sala de aula, a metodologia utilizada, a forma como o processo de ensino-aprendizado é percebido pelo projeto político pedagógico da escola, e acima de tudo, como este é colocado em prática. Dito de outra forma:

O desconhecimento dos psicólogos em relação à estrutura e ao funcionamento das escolas públicas no Brasil, somado ao preconceito em relação às famílias pobres, são muitas vezes justificados e camuflados por teorias psicológicas que explicam  tudo pelos mecanismos intrapsíquicos da criança e pelas relações familiares que os determinam. [1 ]


Perambular pelos espaços escolares, a fim de conhecer um pouco da realidade dos mesmos (infra-estrutura, atividades recreativas e lúdicas, por exemplo), e estabelecer um diálogo com todos aqueles que, de uma forma ou de outra, participam do processo de escolarização da criança é algo que amplia a visão do profissional em psicologia acerca do plano de trabalho que ele irá traçar para a dinâmica dos atendimentos.
Nesse sentido, é preciso teorizar menos e partir da própria realidade dos sujeitos. Uma vez que é necessário desconstruir a noção de sujeitos abstratos que, conforme imaginamos, irão “perfeitamente” se encaixar em pressupostos teóricos estabelecidos de antemão pelo psicólogo. Desse modo, ao invés de adequá-los as teorias é pertinente, antes de qualquer coisa, analisar as suas demandas, desejos, anseios, medos, expectativas, ou seja, é essencial abrir um espaço para a escuta, para os aspectos lúdicos. Já que é através do brincar que a criança expressa a sua criatividade, espontaneidade e descobertas frente ao mundo que a cerca, além de melhorar as suas teias de relações com o outro. Outra questão que vale ser lembrada é a de que devemos enfatizar o que a criança tem de positivo. Sendo assim, é relevante indagar, quais são suas potencialidades, suas capacidades, ao invés de ficarmos enclausurados tão somente no que ela carrega de negativo e que, conseqüentemente, a desvia de tudo aquilo que elegemos como um padrão a ser seguido pelos discentes.
Com o objetivo de compreender ainda mais o que foi exposto em linhas anteriores, eis mais algumas palavras:

Não se importam  se a criança brinca, é criativa, vivaz, alegre, características reveladoras de saúde mental. Atêm-se apenas ao caráter ‘perturbador’ desses comportamentos e, ainda que involuntariamente, trabalham  para a submissão e a adaptação da criança ao seu meio social [...] Ao tratar a criança que não atinge o tipo almejado socialmente, o psicólogo está realizando um trabalho adaptativo e discriminatório, predominando a idéia de que a diversidade precisa ser domesticada e uniformizada.[2 ]  

A partir de tais constatações é relevante pensar que, é mais do que esperado, que as crianças que estejam no início do processo de escolarização, não vão ter o comportamento de ficarem quietas, caladas, sentadas (como se fossem mini-robôs ou mini-adultos) no interior de uma sala de aula. Desse modo, é preciso percorrer outros caminhos para que o processo de ensino-aprendizagem venha à tona. Uma hipótese plausível a ser levantada seria a de trabalhar com o brincar, com o lúdico, com elementos menos mecanicistas e mais práticos e criativos.
Portanto, refletir a respeito de tais questões talvez fosse o primeiro passo para deixarmos de reproduzir práticas que são descoladas e deslocadas  do contexto do próprio desenvolvimento infantil e, assim, construirmos um leque de possibilidades para que a inquietude, o brincar, as descobertas da criança não sejam encaradas e tidas como patológicas.

Desenvolvimento

Descrição das atividades realizadas em supervisão:

   As atividades realizadas em supervisão consistiram em, basicamente, discutir e refletir acerca das atividades que iríamos elaborar para os alunos e se estas eram condizentes com a realidade dos mesmos. Assim, após as duas intervenções que fizemos, relatamos as nossas angustias, frustrações, anseios, expectativas, dúvidas, percepções, mas acima de tudo, o nosso aprendizado em relação aos encontros com as crianças. Sendo assim, concluímos que é por meio da prática, isto é, das diferentes experiências e vivências que iremos nos tornar cada vez mais seguros e aptos para a concretização do nosso trabalho, enquanto futuros profissionais em psicologia.

Relato das intervenções contendo (por encontro)
 
Preparação (descrição das atividades):

 No primeiro encontro (02/03/2011) com as crianças, realizou-se uma atividade de apresentação. Esta se embasou na explicação (de uma forma que fosse adequada a linguagem das crianças e que fosse também acompanhada de elementos lúdicos) do que viria a ser Psicologia e de  como seriam nossos encontros (horários, dias, etc.). Em seguida, partimos para apresentação, propriamente dita, de nós (estagiárias) e dos alunos. Essa atividade consistiu em entregar um papel para cada criança e pedir que ela escrevesse o seu nome e em seguida colocar dentro de um balão e enchê-lo. Após isso, ligamos o som e ficamos dançando, jogando os balões para cima ao som de uma música. Assim que a música parou cada um pegou um balão e ia estourando e dizendo o nome da pessoa que estava escrito, em seguida era entregue para essa pessoa um crachá com o nome dela (que foi confeccionado pelas estagiárias) e duas balas.
Em um segundo momento, pedimos para os alunos pensarem em algumas regras (combinadas) que seriam válidas para todos os encontros, com o objetivo de que o grupo obtivesse um bom desempenho nas atividades.
Em um terceiro momento, foi feita a análise da demanda, através das seguintes perguntas: Minha professora do Projeto Integral é...
O que mais gosto de estudar...
Como seria a escola dos meus sonhos...
O que você acha dos seus colegas...
O que você acha de ficar o dia todo na escola...
Em um quarto momento, foi feita a seguinte atividade: “Votação dos temas a serem trabalhados”: Essa atividade não foi realizada devido ao tempo, mas com ela tínhamos a intenção de descobrir quais os temas que as crianças gostariam que fossem trabalhados nos próximos encontros, pois isso iria nos nortear para a realização dos mesmos.
Por fim, realizou-se uma dinâmica de encerramento: Salada de Frutas. O objetivo dessa dinâmica é o de aquecer o grupo, mas no caso dessa intervenção ela foi realizada no final, pois as crianças já estavam relativamente dispersas e decidimos que era necessário fazer algo que não fosse tão teórico e aprofundado, tratamos então essa dinâmica como uma brincadeira para finalizar o encontro. Essa dinâmica então consiste em pedir para os participantes para formarem um círculo com as cadeiras e dizer que cada um deve guardar o nome da fruta que será: banana, laranja, maça e salada de frutas. Depois solicitar que um participante vá até o centro do círculo e passe as orientações: Quem estiver no centro poderá dizer: laranja (todas as laranjas mudam de lugar), banana (todas as bananas mudam de lugar), maçã (todas as maças mudam de lugar) ou salada de fruta (todos mudam de lugar). Ao dizer qualquer uma das consígnias, o participante que estiver no centro deverá procurar um lugar para se sentar. Sempre sobrará uma pessoa no centro. 
Por sua vez, o segundo encontro, ocorreu no dia (16/03/2011) e foram realizadas as atividades descritas a seguir: Primeiramente entregamos os crachás e duas balinhas. Depois mostramos o cartaz de combinados e ressaltamos, mais uma vez, as “regras” a serem seguidas para um bom funcionamento do grupo como um todo.
Em um terceiro momento, através de fantoches, narramos (de uma forma também bastante lúdica) a história “O amor e o tempo” e realizamos uma breve reflexão acerca da mesma. Abaixo segue a história:
Era uma vez uma ilha onde moravam os seguintes sentimentos: A ALEGRIA, A TRISTEZA, A VAIDADE, A SABEDORIA, A RIQUEZA E O AMOR.
Um dia avisaram para os moradores desta ilha que ela seria inundada. Apavorado, O AMOR cuidou para que todos os sentimentos se salvassem:
- Fujam todos! A ilha será inundada. O AMOR avisou.
Todos correram e pegaram seu barquinho para ir a um morro bem alto. Só O AMOR não se apressou, pois queria ficar um pouco mais em sua ilha. Quando já estava quase se afogando, correu para pedir ajuda. Estava passando A RIQUEZA e ele suplicou:
- RIQUEZA, leve-me com você!
- Não posso. Meu barco está cheio de ouro e prata e você não vai caber.
Passou então a VAIDADE, e o AMOR pediu:
- Oh, VAIDADE, leve-me com você!...
- Não posso, respondeu a VAIDADE. Você vai sujar o meu barco.
Logo atrás vinha a TRISTEZA.
- TRISTEZA, posso ir com você?
- Ah, AMOR... Estou tão triste que prefiro ir sozinha.
Passou a ALEGRIA, mas ela estava tão alegre, que nem ouviu o AMOR chamá-la. Já desesperado, achando que ficaria só, o AMOR, então, começou a chorar. Nesse momento, passou um barquinho comandado por um velhinho. E ele, então falou:
- Sobe, AMOR, que eu te levo e te salvo.
O AMOR ficou radiante de felicidade, que até se esqueceu de perguntar o nome do velhinho. Chegando no morro alto, onde já estavam todos os sentimentos a salvo, o AMOR perguntou à SABEDORIA:
- SABEDORIA, quem era o velhinho que me trouxe aqui?
A SABEDORIA respondeu:
- OTEMPO.
- O TEMPO?... Mas porque só o tempo se dispôs a me trazer até aqui?
- Porque só o tempo é capaz de ajudar a entender um grande AMOR. 
Em um quarto momento, realizamos a atividade: “Vamos levar a escola”: Essa atividade teve como objetivo fazer uma ligação com a atividade anterior, na qual as crianças confeccionaram um barco de papel e o enfeitaram e escreveram quais os sentimentos que elas têm em relação à escola e o que gostariam de levar a ela.
Já em um quinto momento, foi feita a “Dinâmica o presente”: Com essa dinâmica, encerramos nossas atividades e para isso levamos um “presente”, o qual não era de ninguém, mas sim de todo o grupo. Fomos falando algumas características e repassando o presente entre várias crianças. Essa dinâmica teve o objetivo de trabalhar a atenção, a observação, o desapego, a sinceridade, a emoção de dar e repartir um bem recebido, demonstrando o intuito de construir um mundo mais solidário e mais humano.
Por fim, nos despedimos das crianças e ressaltamos que este seria o nosso último encontro, mas que em outras ocasiões outros estudantes do curso de psicologia estariam com eles.


-Relatos das experiências:

Realizar intervenções em grupo de crianças (doze, aproximadamente), entre seis e oito anos de idade consistiu em uma experiência indescritível. Indescritível porque possibilitou com que percebêssemos que o nosso trabalho não é composto tão somente de “alegrias”, mas também de frustrações, anseios, expectativas. Nesse sentido, nem sempre o que planejávamos tinha possibilidades de ocorrer na prática.
Logo, notamos que pela própria questão de estarmos lidando com crianças, o elemento lúdico é o que deveria prevalecer nos encontros. Pois, pouco adianta ficar teorizando quando o objeto de intervenção se refere ao universo infantil, isto é, as atividades teriam que ser condizentes com a realidade dos escolares escolhidos para o referido estágio.
Outra questão que vale a pena de ser salientada diz respeito ao fato de que devemos ter em mente, qual é o nosso papel no interior do grupo. De maneira que, durante o desmembrar dos encontros e também das supervisões, se tornou evidente que não estávamos ali para cumprir a função de professores. Pois, enquanto futuros psicólogos o nosso trabalho deverá se pautar em outra direção, assim, ao invés tentar aplicar a todo o momento, disciplina, ordens, fazer com que os alunos ficassem quietos... Direcionamos o nosso olhar para compreender o comportamento das crianças, a manifestação e expressão de seus sentimentos e emoções, dirigimos a nossa atenção para o que elas têm de positivo (ao invés de perceber tão somente o que elas têm de negativo), e a partir daí tentar promover momentos de reflexões com as possibilidades que os escolares nos ofereceram.
Portanto, acredito ainda que da mesma forma que aprendemos com os escolares, de um modo ou de outro, eles também aprenderam conosco. E é esse aprendizado que torna as experiências tão ricas e diversificadas.

Considerações Finais

A realização do Estágio na Área Escolar foi de suma importância para o alargamento dos meus conhecimentos, tanto do ponto de vista teórico, mas acima de tudo do ponto de vista prático. Assim, através da leitura dos pressupostos teóricos pude refletir e pensar em uma série de dinâmicas e intervenções que poderiam vir a ser aplicadas, a partir da demanda apresentada pelo grupo de crianças em que direcionamos o nosso trabalho.
Por outro lado, aprendi que é por meio da prática, das experiências cotidianas, dos desafios vivenciados a cada novo encontro, das alegrias e descobertas compartilhadas com as outras estagiárias e com a professora orientadora, que a teoria adquire consistência, isto é, significado.
Portanto, percebi que de nada adianta ficarmos presos a manuais e livros acerca do conteúdo trabalhado, se  não entrarmos em contato, de fato, com aqueles sujeitos (concretos) que compõe o nosso laborar (seja em qual área e/ou abordagem escolhida). Pois, é através da pluralidade que encontramos nos escolares que o nosso crescimento, enquanto seres humanos e também enquanto profissionais, se torna possível.

Fernanda Caroline de Melo Rodrigues é graduada em História pelo Unipam  ( Centro Universitário  de Patos de Minas)  e graduanda em Psicologia pela mesma instituição.

Notas
[1] FRELLER, C. C. Crianças portadoras de queixa escolar: reflexões sobre o atendimento psicológico. In: Machado, A.M.M.; Souza, M.P.R.. (Org.). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. 4ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, p.68.

[2 ]  FRELLER, C. C. Psicologia Escolar: Em Busca de Novos Rumos. In: Grupos de crianças com queixa escolar: um estudo de caso, p.75.

O sindicalismo revolucionário português em minúcias: a crônica d'O Congresso de Tomar sob a pena de Neno Vasco



Em 29 de junho de 1913, o que não faltava a Neno Vasco era assunto para  crônica. Afinal de contas, Porta da Europa adentro, o movimento anarquista e operário se via envolto com as investidas da Monarquia espanhola no Marrocos, os soldados franceses eram duramente reprimidos pelo governo por colocarem em questão a hierarquia militar e  o conflito balcânico parecia longe de estar resolvido. No entanto, Neno optou por permanecer com os “assuntos caseiros”. Essa escolha por parte do cronista não era, de modo alguma, ingênua. A opção em croniciar um “fait divers” ocorrido em Portugal, se justificava por causa da forte repressão desencadeada contra o movimento anarquista e sindicalista do país naquele momento.
Após uma série de tentativas (algumas reais outras nem tanto) contra o ministro da justiça Afonso Costa, a Casa Sindical havia sido fechada e diversos militantes anarquistas e sindicalistas, tais como: Carlos Rates, Alexandre Vieira e Pinto Quartim foram presos e levados para a cidade de Limoeiro, sem qualquer tipo de prova  que ratificasse suas respectivas participações nos atentados ocorridos. Com tal atitude, Afonso Costa tinha o objetivo de isolar e, com isso, neutralizar a presença da ala mais radical do movimento operário português [1].
Disso testemunha a própria atitude de Costa que, em face das pressões populares, dentro e fora do país, admitia liberar aqueles que possuíssem emprego fixo, porém, manteria presos aqueles que se encontrassem desempregados, justificando tal medida com a alegação de que tratava-se  de “desocupados” e “vadios” que incorriam no “crime de ociosidade”. Com tal medida, Costa atingia diretamente os militantes que secretariavam algum sindicato ou se encontravam em tournné de propaganda[2].
Valendo-se dessa onda repressiva que havia se abatido sobre a ala anarquista e sindicalista do movimento operário português, os socialistas vinculados à Federação Operária de Lisboa, de cariz reformista, convocaram para o primeiro mês do ano subsequente a realização de um congresso que visava unificar as agremiações sindicais de todo território português. Ao croniciar seus preparativos, Neno argumentava que o fato de o referido colóquio operário ter sido convocado pelos socialistas:
[...] inspirou a princípio certa desconfiança da parte dos partidários da perfeita independência do movimento operário, de classe ante todos os partidos políticos. Parecia-lhe um jogo de habilidosos captadores, feito em momento de desorganização sindicalista e de perseguição governamental, tanto mais que os promotores da reunião recusaram a adiar a sua celebração[3].

Antes, contudo, de passar ao congresso, recapitulemos... no período de (re)nascimento do movimento sindical português, ocorrido logo após a proclamação da República, as associações de resistência, tendo à frente os anarquistas, cresciam numericamente em relação às associações mutualistas. Durante este processo de (re)configuração do movimento operário português, os anarquistas isolam e neutralizam os socialistas, cuja presença continua ativa apenas nas associações mutualistas, menores e menos combativas se comparadas com as associações de resistência. Cada vez menos expressivos, no movimento operário, os socialistas portugueses irão adotar a estratégia parlamentarista quase que exclusivamente. A adoção desta estratégia dos socialistas foi ironicamente registrada por Neno Vasco em uma de suas crônicas:
[...] os socialistas democráticos portugueses já não estão nos primeiros tempos, em que se começava a enveredar pelo parlamento sob ingênuos ou manhosos pretextos de propaganda ruidosa: os nossos sociais democratas entram já maduros, e aqueles ilusórios tempos vão longe...[4].

Se Neno estiver certo de que o tempo de “ilusões” em relação à estratégia parlamentar anteriormente concebida como um, entre outros, meios de propaganda do socialismo, já havia se passado, então resta levantar uma questão: que objetivos possuíam os socialistas ao entrarem no parlamento? Ao que parece, a adoção da estratégia parlamentar por parte dos socialistas possuía objetivos pontualmente reformistas, que deveriam se materializar na construção de uma legislação operária, prevendo, portanto, a resolução tutelar da questão social, através da mediação do Estado nos conflitos entre capital e trabalho[5]. Com a ironia que lhe era peculiar, Neno Vasco compartilhou com seus leitores sua opinião sobre como os “aspirantes a futuros deputados socialistas” deveriam proceder caso quisessem ver alcançado o seu “ambicioso” projeto de criação de uma legislação operária no parlamento português:
[...] Fazer a crítica da propriedade privada, do Estado, do exército? Falar-lhes de revolução social, de socialização, de expropriação revolucionária? Credo! Qualquer programa nítido, qualquer afirmação revolucionária dispersaria aquela gente. Ali estava a burguesia média, a maior força eleitoral, pela sua instrução e pela sua relativa independência econômica. Era preciso lisonjeá-los, falar-lhes dos seus interesses, esconder em sua honra o mais rubro do programa. [...] juntar números com vagas afirmações liberais e ribombantes, sobre as quais está todo mundo de acordo [...] aceitar concursos duvidosos, fechar os olhos sobre contingentes comprometedores, levar à cabo combinações e intrigas[6] .

No entanto, os socialistas nunca chegariam a ocupar qualquer cargo parlamentar por meio de seu público eleitor. Na realidade, apenas por negociações com os republicanos e nunca por meio dos votos obtidos é que eles chegariam às engrenagens políticas do Estado. Disso testemunha o trajeto percorrido pelo primeiro membro do Partido Socialista Português (PSP) que exerceu o cargo de deputado. Aberta a Constituinte em maio de 1911, foram feitas chamadas para a primeira eleição livre de Portugal, nas quais os candidatos concorreriam aos cargos de deputados. Os socialistas se apresentaram em doze círculos eleitorais: dois em Lisboa, dois no Porto e arredores e um em Penafiel, Coimbra, Tomar, Torres Vedras, Aldeia Galega, Setúbal e Beja. Em conjunto, o PSP recolheu um total de 4000 votos, dos quais 2600 no Porto e Gaia e 800 em Lisboa, e não conseguiu eleger um único deputado. Mais tarde, por desistência de Nunes da Ponte, que se tornara governador civil do Porto, cargo incompatível com o de deputado, um socialista entrou para o Parlamento: Manuel José da Silva[7]:
E eis, escreveu Neno Vasco, como o governo republicano respondeu com fina ironia às suposições dos socialistas, dando-lhes os prazeres de uma primeira vitória fácil e presenteando-os com o que se pode bem chamar de uma “entrada de favor” no teatro da representação nacional... Se eles depois não souberem corresponder à gentileza, é porque são dotados de muito mau coração![8].

O que explica, entretanto, esse tímido desempenho do PSP nas eleições? Para entender essa questão devemos levar em consideração a relação de forças existente dentro e fora do movimento operário português. Entre os trabalhadores vinculados aos sindicatos de resistência, onde os anarquistas davam o tom, a legislação operária era combatida e afastada enquanto resolução para o problema da questão social, portanto se abstinham de votar nas eleições. Entre os trabalhadores dos sindicatos mutualistas, lugar onde os socialistas poderiam recrutar algum apoio, eram politicamente inexpressivos devido ao seu baixo valor numérico. Além disso, grande parte do contingente populacional que integrava o proletariado português, era analfabeta e, por esse motivo, era impedida de votar[9]. Os membros da burguesia que eram sensíveis à questão social tomavam a dianteira dos projetos de legislação operária e, por esse motivo, não abriam espaço para os socialistas[10]. Tal constatação leva o cronista à seguinte ilação:
[...] os socialistas, podiam ter-se dispensado do parco esforço que fizeram para levar ao parlamento um deputado: Constituinte está cheia de amigos do proletariado que se apressaram a apresentar, na ausência do representante social-democrático, um punhado de projetos e propostas[11].

Em virtude dos reiterados insucessos no terreno parlamentar, os socialistas procuravam redimensionar sua estratégia tentando se (re)aproximar do movimento operário português, após chegar à conclusão que sem uma forte base de apoio sindical não poderiam pressionar, ainda que de fora, o Estado para fazer avançar suas propostas de legislação operária; daí a sua chamada para o referido congresso, no qual eles se beneficiariam por causa da ausência da sua ala mais radical[12]. Os objetivos dos socialistas, entretanto, ver-se-iam radicalmente frustrados por causa de dois eventos que ocorreriam nos primeiros meses de 1914: as greves dos ferroviários e a postura do próprio governo que, tendo à frente o presidente Bernardino Machado, procurou apresentar uma proposta de reconciliação nacional, anistiando os anarquistas e sindicalistas que se encontravam presos no Limoeiro[13].
Ao discutir a nova postura do governo, Neno Vasco não transigia em seu diagnóstico, afirmando que a postura de Bernardino Machado não deveria ser tomada como indício de simpatia pela luta dos trabalhadores. Muito pelo contrário, para ele todos os governantes eram “iguais”, tratar-se-ia apenas de uma diferença de temperamento entre eles. Alguns eram mais “rudes” e “violentos” do que outros, porém, continuavam a operar dentro da mesma lógica. Partindo de tal premissa, ele traçaria um interessante perfil a respeito das diferenças entre Bernardino Machado e Afonso Costa. Ao contrário de Costa, Bernardino era:

[...] a cordialidade em pessoa chapelada para a direita à esquerda, apertos de mão à toda gente. A amabilidade deste político chega a ser excessiva e enfastia até os próprios colegas; e a caricatura daquela cortesia política e diplomática, que é a rede viscosa de onde se pesca peixe[14].

Uma vez que os militantes presos voltaram a engrossar as fileiras da ala mais radical do movimento operário português, os anarquistas e sindicalistas concordaram em participar do referido congresso, procurando, tanto quanto fosse possível, com que este assumisse a feição alcançada pelo II Congresso Sindicalista realizado em 1911. Ficava, desse modo, confirmada a realização do Congresso tendo como palco a cidade de Tomar, no dia 14 de março de 1914, com a adesão de 103 sindicatos e 7 federações[15]. Para Neno, o referido colóquio operário era o mais importante realizado em Portugal, nem tanto pelos números, que, por si só, justificariam este juízo de valor, mas também, e, sobretudo, pelos debates travados sobre qual seria o método mais adequado que os trabalhadores deveriam usar em sua luta contra os patrões[16].
Com efeito, se Neno acreditava que a importância assumida pelo Congresso se devia aos métodos ali debatidos, resta levantar uma questão, aparentemente banal, mas, de suma importância: no que eles consistem? De um lado, os socialistas buscavam tomar a dianteira das organizações sindicais, com o objetivo de transformá-las em uma força para pressionar o Estado a fim de que os projetos de legislação operária fossem aprovados no parlamento. De outro, os anarquistas buscavam reforçar a autonomia dos sindicatos face aos partidos políticos e ao Estado. Qual foi, entretanto, o método que saiu vitorioso? De certa forma, os dois, porque embora o congresso deliberasse que o sindicato possuía autonomia em face dos partidos políticos, tal como é possível evidenciar no seu terceiro artigo[17], em revanche, no décimo[18], não ficava suficientemente claro se era permitido ou não que um operário pertencente à administração do sindicato poderia participar de eleições parlamentares. Como desdobramento disso:

[...] O Congresso não agradou inteiramente os ciosos da independência sindical, aos que desejavam um operariado emancipando-se a si mesmo [...] mas esperemos que a atividade e a vigilância dos revolucionários neutralizem esse perigo e que um futuro congresso definitivamente o suprima sem perigo de novas divisões [19].

Como se pode evidenciar, as resoluções deliberadas durante o colóquio operário em questão não haviam agradado inteiramente aos anarquistas e sindicalistas, os quais ele identifica vagamente como aqueles que seriam “ciosos da independência sindical”. Mas, para Neno em que medida tais resoluções o agradaram ou desagradaram? Segundo Neno, para que os sindicatos cumprissem seus objetivos, presentes ou futuros, no que concerne à luta por melhorias imediatas na sociedade capitalista e, igualmente, viabilizasse a ginástica revolucionária para que os trabalhadores criassem a consciência necessária para (re)construir a sociedade num sentido socialista, seria necessário evitar duas opções, que se encontravam intimamente ligadas com a correlação de forças políticas ativas no interior do movimento operário português:

[...] o primeiro é a subordinação da organização operária a um partido político ou a adoção duma doutrina oficial, por mais revolucionária que ela seja; o segundo é, com pretexto de independência; suprimir dentro do sindicato o franco e leal embates dos métodos e ideais, agindo no terreno e com os meios que o sindicato oferece [20].

Ao rejeitar a primeira, ele alude aos socialistas que procuravam instrumentalizar o sindicato para transformá-lo em correia de transmissão da sua ideologia, ignorando o fato de que os operários somente poderiam se impor politicamente caso permanecessem unidos sobre os seus interesses comuns enquanto assalariados, o que significava, portanto, permanecer fora dos partidos políticos e sua luta pelo poder no Estado. Caso essa escolha fosse aceita a autonomia, pedra de toque identitária do sindicalismo de ação direta, ver-se-ia seriamente ameaçada. Para além da confusão gerada entre os trabalhadores, a violação da autonomia sindical poderia redundar em algo ainda mais perigoso devido a um “autoritarismo inconsequente”: ver as ideias de uma minoria artificialmente transplantadas para uma maioria.
A segunda escolha, por ele igualmente rejeitada, remete à correlação de forças no interior do próprio movimento anarquista português, que se encontrava dividido entre anarquistas sindicalistas e anarco-comunistas, tal como testemunhava o assíduo e fervoroso debate opondo Emílio Costa e Manuel Ribeiro através do jornal, A Terra Livre no ano que precedeu à realização do congresso[21].
Entendendo que o sindicalismo revolucionário era a forma histórica assumida pelo anarquismo na modernidade, os anarquistas sindicalistas, tais como Manuel Ribeiro, concluíam que o “sindicato se bastava a si mesmo” para atingir o socialismo libertário. Em virtude disso, dispensavam a existência de um grupo especificamente anarquista que agisse, enquanto minoria ativa, dentro dos sindicatos para realizar a propaganda anarquista[22].
Em troca, os anarco-comunistas, tais como Emílio Costa, inferiam que, conquanto o sindicato não devesse adotar o anarquismo como doutrina oficial e se manter aberto a todos os trabalhadores, este “não se bastava a si mesmo” para atingir o socialismo libertário, mesmo que recebendo o adjetivo de revolucionário. Temendo que a tendência reformista dos sindicatos integrasse os trabalhadores na sociedade capitalista, ele julgava essencial que os anarquistas organizados e identificados enquanto tal, atuassem dentro dos referidos organismos operários enquanto guardiões da sua consciência revolucionária[23].
Ao enunciar suas considerações finais sobre a crônica d’ O Congresso de Tomar, Neno Vasco coloca em evidência as relações de força entre as diferentes correntes existentes e atuantes no movimento operário português, porém, sublinha que: “Unir as forças não é nivelar as tendências, nem abdicar das opiniões. Pelo contrário, a alma da união está na tolerância”, logo o papel dos anarquistas dentro dos sindicatos seria” conquistar não os estatutos e as declarações oficiais, mas o espírito dos associados e das massas para se traduzir espontaneamente em fatos”[24].
Apesar dos embates teóricos, as resoluções práticas foram encaminhadas no sentido de unificar “a família proletária” sobre o terreno da luta contra os patrões com os meios que provêm da “força dos produtores” e da “união dos seus braços”. Ficava, assim, informa Neno, constituída a transitória União Operária Portuguesa, a partir da qual deveria ser edificada futuramente a Confederação Geral do Trabalho Português[25].


Thiago Lemos Silva é mestre em História pela UFU, professor da educação básica na rede particular e pública, e membro do Coletivo  Mundo Ácrata.

Notas

[1]SAMIS, Alexandre. Minha pátria é o mundo inteiro: Neno Vasco, Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário em Dois Mundos. Lisboa: Letra Livre, 2009, p. 325.
[2]SAMIS, Alexandre. Minha pátria é o mundo inteiro: Neno Vasco, Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário em Dois Mundos. Lisboa: Letra Livre, 2009, p. 325-329.
[3]VASCO, Neno. O Congresso de Tomar. A Lanterna. São Paulo, 19/04/1914.
[4]VASCO, Neno. Da Porta da Europa. Lisboa: Biblioteca Libertas, 1913, p. 37.
[5]PEREIRA, Joana Dias. Sindicalismo revolucionário: a história de uma Ideia. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Nova de Lisboa,2008, p. 41.
[6]VASCO, Neno. Da Porta da Europa. Lisboa: Biblioteca Libertas, 1913, p. 38.
[7]Logo nas primeiras semanas de trabalhos da Assembléia, entretanto, os republicanos mostrar-se-iam de uma hostilidade incontornável para com ele, isolando-o e, por conseguinte, reduzindo-o a uma apagada impotência. PULIDO, Vasco. A República e as classes trabalhadoras (Outubro de 1910-Agosto de 1911). Análise Social. Lisboa, nº 34, 1972, p. 309.
[8]VASCO, Neno. Da Porta da Europa. Lisboa: Biblioteca Libertas, 1913, p. 37.
[9]PULIDO, Vasco. A República e as classes trabalhadoras (Outubro de 1910-Agosto de 1911). Análise Social. Lisboa, nº 34, 1972, p. 309.
[10] PULIDO, Vasco. A República e as classes trabalhadoras (Outubro de 1910-Agosto de 1911). Análise Social. Lisboa, nº 34, 1972, p 308.
[11] VASCO, Neno. Da Porta da Europa. Lisboa: Biblioteca Libertas, 1913, p. 40.
[12]PEREIRA, Joana Dias. Sindicalismo revolucionário: a história de uma Ideia. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Nova de Lisboa, 2008, p. 65.
[13]SAMIS, Alexandre. Minha pátria é o mundo inteiro: Neno Vasco, Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário em Dois Mundos. Lisboa: Letra Livre, 2009, p. 342.
[14]VASCO, Neno. Políticos e Política. A Lanterna .São Paulo, 14/03/1914.
[15]SAMIS, Alexandre. Minha pátria é o mundo inteiro: Neno Vasco, Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário em Dois Mundos. Lisboa: Letra Livre, 2009, p. 342.
[16]VASCO, Neno. O Congresso de Tomar .A Lanterna. São Paulo, 19/04/1914.
[17]VASCO, Neno. O Congresso de Tomar. A Lanterna. São Paulo, 19/04/1914.
[18]VASCO, Neno. O Congresso de Tomar. A Lanterna. São Paulo, 19/04/1914.
[19]VASCO, Neno. O Congresso de Tomar. A Lanterna. São Paulo, 19/04/1914.
[20]VASCO, Neno. O Congresso de Tomar. A Lanterna. São Paulo, 19/04/1914.
[21] Tema que retoma e atualiza, também em Portugal, o debate entre o anarquista-sindicalista francês Pierre Monatte e o anarco-comunista italiano Errico Malatesta durante o Congresso Anarquista de Amsterdam em 1907. A esse respeito ver: MONATTE, Pierre. Em defesa do sindicalismo; MALATESTA, Errico. Sindicalismo: A crítica de um anarquista ambos em WOODCOCK, George. Os grandes escritos anarquistas. Porto Alegre: L & PM. 1981.
[22]FREIRE, João. Estudo introdutório In: VASCO, Neno. Concepção anarquista do sindicalismo. Porto: Afrontamento, 1984, p. 24-26.
[23]FREIRE, João. Estudo introdutório In: VASCO, Neno. Concepção anarquista do sindicalismo. Porto: Afrontamento, 1984, p. 24-26.
[24]VASCO, Neno. O Congresso de Tomar, A Lanterna, São Paulo, 19/04/1914.
[25] VASCO, Neno. O Congresso de Tomar. A Lanterna. São Paulo, 19/04/1914.