domingo, 11 de novembro de 2012
sábado, 10 de novembro de 2012
O GRUPO DE ESTUDOS EM IMAGINÁRIO, REPRESENTAÇÃO E IDEOLOGIAS POLÍTICAS convida a todos para sua próxima reunião.
Tema a ser debatido: Da mônada psíquica ao sujeito social: a constituição da subjetividade segundo Cornelius Castoriadis.
Texto de apoio: CASTORIADIS,Cornelius. A instituição social-histórica: o individuo e a coisa. In: A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
Data: dia 23 de novembro, às 15:00 horas.
Local: sala 304, Bloco D (antigo prédio da FACISA), do Centro Universitário de Patos de Minas.
O texto encontra-se disponível para reprodução na xerocadora “RISC E RABISC”, na pasta do nosso grupo.
O grupo se reúne quinzenalmente para debater de forma coletiva, com base em uma bibliografia previamente apontada, alguns aspectos relacionados aos temas: imaginário, representação e ideologias políticas, a partir de autores clássicos e contemporâneos, oriundos de diferentes matizes e matrizes: filosofia, história, psicologia, entre outras áreas das humanidades.
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
Don Quixote (Em comemoração de seu terceiro centenário)
DON
QUIXOTE, nobre cavaleiro da Mancha, amigo e protetor dos sofredores, amante da
imortal Dulcinéia del Toboso e dono do fiel Rocinante: cobre teu rosto com
ambas as mãos para que não se note sua vergonha ante a ofensa que acabam de
infligir-te; porque nunca te ofenderam tanto como hoje, trezentos anos depois
daquele dia inesquecível em que abandonaste pela primeira vez tua casa e teus
amigos para percorrer o mundo em defesa da justiça e para fazer ressuscitar a
fama eterna da cavalaria andante.
Muito
padeceste em tua vida, grande cavaleiro da Triste Figura! Combateste uma
batalha desesperada contra gigantes, mas afinal os gigantes eram apenas moinhos
de vento e tiveste de pagar teu erro com a cabeça quebrada e alguns ossos
partidos. Rústicos aldeães quebraram teus dentes cavalheirescos, pastores de
ovelhas vulgares pisaram-te com seus pés, gente ingrata, incapaz de compreender
a grandeza cavalheiresca, te encerrou numa jaula de madeira e te convenceu de
que estavas encantado; até corrias o perigo de que em tua estranha clausura se
sentisse o mau cheiro, e se não fosse o bom Sancho, a poesia de tua empresa
heróica teria terminado num fato demasiado prosaico... Mas suportaste com
paciência augusta, porque teu escudo estava branco e nenhuma mancha sugava tua
honra de cavaleiro. Todo o mundo se ria então de tuas façanhas imortais, mas
que importava o seu riso? Tu vivias em teu mundo próprio, mundo distinto do dos
outros; cada acontecimento se apresentava ante ti em cores e imagens
particulares e quem se atreveria a sustentar que tuas visões eram piores que as
dos outros? Tu vias gigantes, enquanto Sancho só percebia moinhos de vento, e
considerando-se que a verdade absoluta não existe, já que aquilo que
denominamos verdade está sempre determinado por nossas condições subjetivas,
por nossa convicção interior, tua opinião não foi pior que a do bom Sancho...
Se tivesses contemplado o mundo com os mesmos olhos que os outros homens,
jamais terias sido Don Quixote; no entanto, devido precisamente a teres interpretado
os fenômenos do mundo segundo tua própria maneira, teu nome se tornou imortal e
tua imagem aparece em nossos corações tão fresca e vivida como há três séculos.
Portanto, nada pôde agravar-te por ter visto e sentido de um modo distinto do
de teus contemporâneos. Eles zombaram de ti, mas tu nem sequer os ouvistes: seu
riso não teve eco em teu mundo.
Mas
hoje, ah! hoje o quadro variou completamente. Hoje te admiram, valente
cavaleiro da Triste Figura. Agora celebram teu terceiro centenário com sábios
discursos e festas ruidosas. Os mercadores, Don Quixote, os traficantes, os
filhos pervertidos de teu fiel criado Sancho, te admiram. Outrora eras grande
porque os mercadores, os homenzinhos prudentes e práticos zombaram de ti, mas
hoje, hoje celebram tua memória ocultando o quadro de tua grandeza luminosa com
seus ventres avultados e suas almas grosseiras... Nem sequer te consultaram se
estás de acordo com seus festejos, se agradam suas homenagens... Eles são os
donos da vida, grande cavaleiro, eles, os traficantes, compraram a propósito
várias fangas de aveia para o magro Rocinante, a fim de que não seja tão magro
em meio de uma companhia tão gorda.
Ó,
compreendo tua dor, cavaleiro imortal! Sei por que ocultas teu rosto com ambas
as mãos: para que o mundo não veja a ofensa grave que te causaram. Acredita-me,
nobre cavaleiro, que conheço teus pensamentos ocultos e participo completamente
da dor de tua alma ofendida. Que o mundo se tenha rido de ti, que importava?
Mas, que os mercadores festejem tua memória, que os ricos comerciantes de
Madrid estabeleçam um prêmio de vinte mil pesetas para o que pinte o melhor
retrato de ti, isto sim é doloroso, mais amargo que o fel... Eu não sei que
classe de quadro vão fazer de ti, mas temo muito que representem o bom Rocinante
como cavalo de cervejeiro e que a ti mesmo te ponham uma pança... Sim, grande
cavaleiro, temo que o façam, porque nos tempos que correm já não se respeitam
os ideais “magros”; no mundo dós mercadores até o idealismo engordou: não lhes
nasceram asas, mas em compensação adquiriram um ventre respeitável... Que
necessidade têm de asas? O caminho para as estrelas foi esquecido; hoje o
idealismo permanece tranqüilamente no solo e recolhe vermezinhos...
Ó,
nobre cavaleiro da Mancha! Tu travaste uma batalha contra gigantes e serpentes
de fogo; os gigantes morreram a pouco e pouco, o fogo extinguiu e só ficaram as
serpes, serpes — mercadoras, frias, escorregadiças que não podem contemplar o
céu azul e o sol luminoso porque se arrastam através da vida como ladrões. Se
te levantasses agora de teu túmulo e não voltasses a percorrer o mundo para
realizar façanhas heróicas certamente deverias lutar com os mercadores, mais
perigosos que os antigos gigantes...
Recordo
ainda como se fosse a primeira vez que te conheci. Eu tinha então uns doze ou
treze anos. Era uma noite de Natal; nós, as crianças, estávamos na cozinha
aguardando com impaciência que a mãe bondosa abrisse a porta; estávamos
impacientes, pois quem poderia adivinhar as surpresas que mamãe havia preparado
para nós? E por fim abriu-se a porta do paraíso e todos corremos ao aposento
com tanto ímpeto como se houvesse tratado de salvar a vida. As velas da árvore
de Natal brilhavam com todas as cores e ao derredor delas estavam distribuídas
as coisas boas que mamãe havia comprado para nós e ocultado com tanto zelo
durante toda a semana. Aí estava o meu lugar: uma pequena espingarda, um quepe,
um teatro infantil, maçãs, nozes e diversos doces, e no meio de toda essa
riqueza havia um livro. A princípio não o havia visto, pois meus olhos estavam
absorvidos por outros objetos; mais tarde, porém, ao descobri-lo, tomei-o
rapidamente na mão e o contemplei com olhares curiosos. Trazia na capa um
quadro: duas figuras extravagantes. Um homem alto e delgado que levava uma velha
armadura demasiado pequena para ele e montava um velho cavalo tão magro como o
dono; ao lado do primeiro ginete ia, montado em um asno cinzento, um homem
pequeno e gordo. O título do livro era: História do engenhoso fidalgo Don
Quixote de la Mancha. Aquela noite contemplei apenas as figuras do livro — era
uma edição ilustrada para crianças — mas não li nem uma palavra. Na manhã
seguinte me entreguei ao meu tesouro literário. Fazia um frio espantoso em
casa; não havia lume porque minha mãe dormia ainda. Cuidadosamente desci da
cama, peguei o livro e tornei a meter-me nela entre os frios lençóis. E comecei
a ler. A princípio a história não me produziu grande impressão; logo depois,
porém, quando cheguei às façanhas heróicas do nobre fidalgo, eu não contive o riso.
“Que louco! — pensei — Até um cego poderia ver que se trata de moinhos de vento
e não de gigantes. Estranhava-me que não se importasse com as palavras
razoáveis do prudente Sancho!” E eu experimentava um verdadeiro prazer quando
lhe quebravam as costelas. Mas logo nasceu em meu coração outro sentimento: a
compaixão. Eu imaginava a figura de mártir do valente cavaleiro e seus lábios
ensangüentados e me indignei porque o tratavam tão mal. “É um louco; não sabe o
que faz! Por que maltratá-lo tanto?”
Voltei
a ler o livro com freqüência, até que o perdi um dia no bosque. Sentia-o muito,
mas as crianças esquecem facilmente e eu também esqueci a pouco e pouco a Don
Quixote, a Sancho Pança, a Rocinante, à formosa Dulcinéia del Toboso.
Passaram-se os anos. O idealismo tormentoso da juventude me abraçou também a
mim com toda a veemência de sua força. Nesse formoso período voltei a ler pela
segunda vez Don Quixote. Havia caido por causalidade em minhas mãos e desde
então já não me separei dele.
Eu
não poderia afirmar que me tenha sentido entusiasmado por ele nos primeiros
tempos. Ainda via nele um cego fantaseador, vítima inconsciente de uma idéia
fixa; contudo lia-o com sumo agrado, porque a esplêndida arte narrativa de
Cervantes me produzia uma fote impressão. Então compreendi também contra quem
havia dirigido sua obra imortal, o grande espanhol; algumas coisas somente me
eram incompreensíveis: eu não percebia ainda o Rocinante, que eu mesmo montava
e ainda não me dava conta de que eu estava também enamorado da imorredoura
Dulcinéia del Toboso. Agora sei muito bem que cada um de nós cavalga em seu
próprio Rocinante e está enamorado de alguma Dulcinéia e, para dizer a verdade,
alegro-me de que seja assim... Mas então ignorava tudo isso. Don Quixote era um
dos meus favoritos, mas na realidade só era um hóspede para mim.
E
novamente transcorreram meses e anos. Eu abracei a vida e a beijei com todo o
idealismo, com toda a força da juventude. Em minha mente se refletiam quadros
sublimes, quadros de felicidade e de amor, de um futuro grandioso e belo. E
neste período me visitava amiúde um hóspede estranho, desconhecido; chegava ao
anoitecer, quando a obscuridade se estendia lá fora, e levava sempre a mesma
capa negra sobre os ombros secos. Sua visita nunca era prolongada. Vinha,
contemplava-me com olhos frios e cruéis, em seus lábios finos e pálidos
aparecia um sorriso de desprezo e não pronunciava uma única palavra. Cada vez
que me visitava eu sentia uma punhalada no coração: não o queria, mas tampouco
o odiava. Eu esperava sempre que me falasse; às vezes até movia os lábios como
se me quisesse dizer alguma coisa, mas eu nada compreendia. Logo deixou de vir
por algum tempo. Mas uma noite voltou de novo e esta vez sim, falou-me. “Louco,
para que?” — isso foi tudo o que disse, e logo partiu. “Louco, para que?” Estas
palavras ardiam em minha alma como um fogo infernal, ressoavam constantemente
em meus ouvidos, causando-me muitos momentos amargos e dolorosos. Qual, é o
sentido dessas palavras? — perguntava-me. E de repente me apareceu a cara
conhecida, com os olhos frios e impiedosos, os lábios finos e pálidos e o
eterno sorriso de desprezo... E perdia o valor de achar uma resposta à minha
pergunta.
Em
certa ocasião, era no inverno, voltei para casa altas horas da noite. Havia ido
ver Hamlet e a obra formidável do genial inglês impressionou os sentimentos
mais recônditos de minha alma. Eu sentia tanta amargura em meu coração, estava
eu tão triste e melancólico, que quase ia a romper em choro. Sentado ante minha
mesa, volvi a ouvir as palavras terríveis que tanto me haviam torturado e que
me eram tão odiosas: “Louco, para que?” Desesperado, tomei do livro: era o
primeiro tomo de Quixote. Nobre cavaleiro da Mancha, podes imaginar quão
agradecido te fico? A não ser por ti, certamente não teria sobrevivido àquela
noite tremenda, inesquecível. Passei a noite lendo e meu coração se sentiu
aliviado e contente; meus olhos derramaram lágrimas, não por causa da dor, mas
devido a uma alegria interior que me fazia chorar. Por fim deixei o livro de um
lado e me pus a passear pela pequena casa. Nessa noite, que começou tão
tristemente, senti-me inteiramente ditoso.
De
repente olhei por acaso o espelho que estava em cima da chaminé. Que é isso, um
sonho ou um quadro real? Ali, no espelho, divisei o fidalgo da Mancha. Montava
seu Rocinante e me fazia amavelmente um sinal com a cabeça. Mas seu rosto me
era muito conhecido! Movi o braço para a esquerda e o cavaleiro do espelho fez
o mesmo. Meneei a cabeça; Don Quixote fez idêntico movimento. E logo compreendi
quem era e conheci também Rocinante. Mas não vou revelar-vos o segredo...
“Louco, para que?” ressoou novamente em meus, ouvidos; mas esta vez já não tive
medo da pergunta, porque já sabia que responder. “Louco, para que?”, perguntas,
hóspede silencioso e desconhecido dos grandes olhos enigmáticos, “para que?”.
Pois agora vou dizer-te: para montar um Rocinante e estar enamorado de uma
Dulcinéia del Toboso...
Então
eu não sabia nada de Nietzsche, mas já compreendia a magnífica lição de
Zaratustra: Ditoso é o homem que pode zombar de si mesmo! Desde aquele momento
o nobre cavaleiro da Mancha já não era para mim um hóspede, mas um bom amigo.
Via-o em todos os períodos da história humana e concebi que Don Quixote e
Hamlet são os dois pólos ao redor dos quais gira a nossa existência.
Sim,
valente fidalgo, tu eras grande, não por teus fatos, mas pela força de tua
vontade poderosa. Não esperastes que algum dia criara um mundo para mim, tu
mesmo criastes um mundo, teu próprio mundo; podem os outros rir dele, tu
contudo és um criador, enquanto eles são somente seres de outro mundo, que
receberam em herança, pois eles jamais seriam capazes de criá-lo. Tu és imortal
porque o és todo para ti; não querias ser o escravo mas o senhor da vida e por
isso tiveste sempre o valor de proceder, ainda quando a razão prática de teus
coetâneos não via nenhum motivo para a ação. Ó, cavaleiro da Triste Figura,
oxalá tivéssemos nós um pouco desse valor para agir, desse valor que não teme
as conseqüências! Que bem nos faria nesta época em que o espírito de Hamlet
domina as almas e os corações dos poucos homens que não tomam parte no baile
dos mercadores em torno do bezerro de ouro! Todos nós temos visto, como Hamlet,
o fantasma de nosso pai assassinado e conhecemos o assassino, mas renunciamos à
ação, à ação salvadora e libertadora, nobre cavaleiro. Vivemos num mundo de
ciência positiva e nossos corações estão vazios e as almas murchas.
Antigamente
os homens tremiam ante a morte e por isso suportavam com mais resignação o jugo
da servidão e da escravidão, desde que pudessem salvar a vida. Os Hamlet de
nossa época não temem a morte, sua covardia adquiriu um caráter diverso: tremem
ante o ridículo, porque se esqueceram de rir de si mesmos. Eles vêem a sombra
ensangüentada do assassinado e bem quiseram tirar vingança do homicida, mas há
uma coisa que os detém: não o medo da morte, mas a idéia de que talvez os
gigantes se convertam em moinhos de vento, que a tragédia talvez termine em
comédia; e em tal caso Hamlet perderia sua fama de pensador profundo,é a gente
diria: “Vede que néscio é, nem sequer sabe distinguir entre um gigante e um
moinho de vento”; e para Hamlet a burla das pessoas é pior que a morte...
Uma
partícula de teu espírito, nobre cavaleiro, uma partícula apenas... Isto é o
que poderia salvar-nos. A ação foi relegada ao esquecimento pelo conhecimento:
aprendemos, graças a Deus, a diferenciar os gigantes dos moinhos de vento, mas
se tu não ressuscitas nós apodrecemos no conhecimento: saberemos tudo mas não
saberemos nada... Nossos cérebros se tornarão cada vez mais perfeitos; contudo
a força dos músculos se irá extinguindo, nossos braços se tornarão impotentes...
E
não obstante, devemos dirigir-nos hoje tão-somente aos Hamlet; talvez nos
entendam e com o tempo, quem sabe, ambos os pólos talvez se encontrem no
equador da vida e Don Quixote e Hamlet se tornem amigos: o primeiro aprenderá a
ser o fantasma do pai morto, a reconhecer o assassino verdadeiro, e Hamlet irá
montado num Rocinante e escreverá poesias dedicadas à imortal Dulcinéia del
Tòboso... Quem pode saber o que nos oferecerá o futuro? E a quem, se não aos
Hamlet, iremos dirigir nossa palavra? Hamlet nasceu sob o céu cinzento e nas
névoas espessas da Inglaterra e quando tiver ocasião de conhecer a pátria de
Don Quixote, o formoso céu azul da Mancha, quem sabe como nele influirá o clima?
A
quem nos haveremos de nos dirigir, nobre cavaleiro? Aos mercadores que celebram
agora tuas façanhas imortais? A eles, don Quixote? A eles havemos de falar? Ó,
nobre cavaleiro da Mancha, vejo quão vermelho fica o teu rosto ao recordar com
quanta crueldade te ofenderam! Tu não podes compreender como degenerou a tua
raça. É verdade que Sancho era um grande comilão, sua inteligência não abarcava
mais que as necessidades de seu estômago e de noite, quando tu, valente
fidalgo, sonhavas com grandes façanhas e com a formosa Dulcinéia, ele
permanecia estendido, roncando ruidosamente. Apesar disso, era um homem bom e
alegre e quando não havia nada melhor ficava satisfeito com um pedaço de pão e
um par de cebolas. Mas tudo isso ocorria enquanto tu vivias. Tu eras seu amo e
ele com seu jumento tinha de arrastar-se atrás de ti e de Rocinante, porque
sabia muito bem que só tu e não outro lhe proporcionarias a ilha prometida. E
foi uma desgraça que não tenha morrido antes de ti, porque depois de teu
falecimento considerou-se senhor e viveu de tua honra. Seus filhos esqueceram
logo que seu pai havia sido um simples escudeiro e lhes pareceu que o velho
Sancho foi o herói verdadeiro de tua história. Certamente o pai lhes falou
antes de morrer da formosa Dulcinéia e eles se empenharam em encontrá-la: como
gente prática, que nunca voa no ar com seus pensamentos, deram logo com ela.
Mas adivinhai o que fizeram. Tenho medo de dizê-lo, mas também não posso
ocultar, porque o assunto gravita sobre minha razão como uma pedra.
Violaram-na,
os miseráveis, e a divina Dulcinéia foi engravidada pelos filhos de um
escudeiro... Nobre cavaleiro: os ricos comerciantes de Madri que estabeleceram
um prêmio por teu retrato autêntico são os filhos espúrios, os netos de teu
antigo criado Sancho Pança...
E
esses bastardos são agora os donos da vida. Eles prostituíram os sentimentos
delicados da humanidade, fecharam com portas de ferro o caminho para as
estrelas e adornaram com moedas de prata o caminho que leva ao lodaçal. Esses
servidores do bezerro de ouro fizeram do mundo uma mancebia, e ai daqueles que
se negam a reconhecer sua honestidade de mercadores! Um dia, um rouxinol cantou
ante as suas portas e eles lhe perguntaram em seguida: “Qual é teu preço comum?
Quanto se te deve pelo canto?” e o rouxinol fugiu para nunca mais voltar. E foi
bem feito. Porque ali onde grunhem os porcos, não pode cantar o rouxinol.
Felizmente os portões do céu estão fechados, senão os senhores da vida enviariam
uma delegação ao Criador para perguntar-lhe o que lhe devem pelo universo que
criou para eles.
Ó,
nobre cavaleiro da Mancha, defensor da justiça, que fizeram de teu nome honesto
essas almas de mercadores que celebram agora teu terceiro centenário? Temo que
o bom Rocinante não poderá suportar a ignomínia e a vergonha que te causaram. E
para consolar-te, grande cavaleiro, para diminuir um pouco as tuas aflições,
escrevi estas palavras, mediante as quais se recordarão os solitários, os
ascéticos e incrédulos, os sonhadores de coração sangrante e de alma enferma,
que trezentos anos atrás vivia um cavaleiro que se sentia feliz de cavalgar num
Rocinante e de estar enamorado da bela Dulcinéia. E talvez leiam tua história e
a alegria lhes suavize os pobres corações...
Esta
é a minha homenagem em teu aniversário; eu não sei se vai agradar-te, mas hás
de recebê-la com o coração limpo... Contudo, sentir-me-ia feliz se
ressuscitasses no mundo dos mercadores. Eu te receberia como um monarca e com
lágrimas nos olhos te beijaria como o salvador e redentor da humanidade
escravizada. E chamaria a todos os desesperançados e desesperados para que se
reconfortassem com a tua presença e lhes diria: “Tirai os sapatos porque a
terra em que pisais agora é terra sagrada”.
Rudolf Rocker
In: As Idéias Absolutistas no Socialismo.Disponível em:http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/rocker.html
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