Rocker, Rudolf. Os sovietes traídos pelos bolcheviques. São
Paulo: Hedra, 2007
Os conselhos são órgãos revolucionários que surgem
espontaneamente entre as classes trabalhadoras em períodos onde a ruptura com a
sociedade capitalista e a construção da sociedade socialista se apresentam como
possibilidade real para os proletários e camponeses presentes em tais momentos
de convulsão social. Os conselhos tem por objetivo superar a estrutura
econômica e política da sociedade burguesa, que se baseia na propriedade
privada e na democracia parlamentar.
Os conselhos visam, desse modo, erigir um tipo de
administração onde, uma vez socializados os meios de produção, os trabalhadores
se organizam de baixo para cima a partir de pequenas unidades, tais como as
fábricas, escolas, comunidades etc.. para gerir diretamente os assuntos
concernentes a sua existência coletiva. Depois de interligadas, tais unidades
substituem o Estado liberal de direito na tarefa de articular as diferentes
partes que compõem a totalidade do corpus social.
Assim sendo, podemos perceber que os conselhos operários
podem assumir conteúdos distintos, que são, por sua vez, dependentes do
contexto histórico em que estes emergem e se consolidam. Foi desse modo que
procedeu com a Comuna de Paris em 1871, os sovietes na Revolução Russa em 1905
e após, em 1917, os rattes na Revolução Alemã em 1919, as coletividades na
Guerra Civil Espanhola em 1936, os caracoles zapatistas no México em 1993 e,
mais recentemente, as asambleas na Argentina em 2001.
Usualmente, o conselhismo é tomado como uma expressão
filosófica típica do marxismo, mais especificamente do marxismo heterodoxo.
Isso fica bastante evidente quando nos deparamos com o trabalho de autores do
quilate de Rosa Luxemburg, Anton Panekoek, Paul Mattik, Hermam Gorter entre
outros. Não obstante, a reivindicação dessa herança não é feita apenas pelos
marxistas. Como iremos ver mais adiante, outras correntes do pensamento
socialista também exigem o seu lugar junto aos demais executantes
testamentários do legado deixado por aquilo que seria, segundo a feliz
expressão de Hannah Arendt, o “tesouro perdido da tradição revolucionária”.
Dentre essas outras correntes do pensamento socialista estão,
naturalmente, os anarquistas, cujas reflexões acerca dos conselhos são
anteriores e, em certos aspectos, mais profundas do aquelas realizadas pelos
seguidores de Marx. Nesse sentido, não foi por acaso que o anarquista alemão
Rudolf Rocker se esforçou, a maneira de
um caçador, para descobrir e decifrar a obscura, porém viva, presença desse
tesouro perdido no interior de uma tradição revolucionária que anunciava o fim
da desgraça representada pela exploração econômica e pela dominação política.
Esforço este, em grande parte, organizado e sistematizado no livro “Os Sovietes
traídos pelos Bolcheviques”, obra em que o autor levanta e discute questões
significativas para um correto entendimento acerca da teoria e prática
conselhista.
Nessa direção, a presente resenha do livro de Rocker tem o
objetivo de, por um lado, refletir sobre a origem teórica dos conselhos,
demonstrando a sua estreita proximidade com a tendência anarquista que se
desenvolve no seio da Primeira Internacional e, por outro, analisar o
desenvolvimento prático dos conselhos durante a Revolução Russa de 1917,
sublinhando a sua eventual incompatibilidade com ditadura do proletariado
implantada pelo partido bolchevique após a tomada do poder por Lênin e seus
seguidores.
Ao traçar a genealogia da idéia de conselhos, Rocker remonta
até a longínqua década de 60 do século XIX, período onde aparece, como já
sabemos, a Associação Internacional dos Trabalhadores. Para o nosso autor, foi
com o surgimento e transformação da Internacional que o movimento operário
europeu começou a se preparar para “despojar os últimos restos do radicalismo
burguês e voar com as suas próprias asas” (p.78).
Portanto, na medida em que a Internacional tomava consciência
de si mesma, a idéia dos conselhos operários ia ganhando contornos cada vez
mais nítidos entre seus aderentes. De congresso em congresso, essa idéia
aparecia aqui e acolá. Mas, sem sombra de dúvidas, ela só foi precisada e
desenvolvida coma clareza que lhe era necessária no Congresso da Basiléia, no
ano de 1869. De acordo com Rocker, foi no congresso em questão que o anarquista
belga Eugins Hins teria discutido pela primeira vez as tarefas presentes e
futuras das organizações sindicais no que concerne a realização do socialismo.
Em sua moção, Hins sustentava que da organização surgida para
a defesa do trabalho contra o capital, nascerá “a administração política das
comunas”, onde “os conselhos das organizações de ofícios e indústrias
substituirão o governo atual e a representação do trabalho substituirá de uma
vez por todas os velhos sistemas políticos do passado”. (p.80)
Segundo Rocker, tal premissa teria surgido da compreensão de
que existe uma íntima relação entre os fatores econômicos e políticos que
compõem a vida social. Como acreditava que, com a vinda do socialismo, a era da
exploração do homem pelo homem teria findado, a dominação do homem pelo homem
também deveria sê-lo.
Logo, a materialização da sociedade socialista demandaria não
apenas de uma nova forma de expressão econômica, mas, também e, sobretudo, de
uma nova forma de expressão política, pois, ela só seria realizável no âmbito
desta última. “Essa nova forma”, pensava ele, “poderia ser encontrada no
sistema de conselhos”(p.80).
Como estavam cônscios de que a sua tarefa era se apoderar dos
meios de produção econômica, acreditavam não ter necessidade de organizar um
partido político e tomar o poder do Estado, mesmo que este último tivesse o
nome de proletário. Para Rocker, o adágio sainti-simoniano de que o governo dos
homens deveria dar lugar à administração das coisas era a pedra de toque identitária
da filosofia dos internacionalistas.
Todavia, apenas as seções espanhola, italiana e francesa, que
se encontravam sob a influência das idéias de Bakunin é que aderiram e,
portanto, defenderam a proposta conselhista. Em virtude disso, tiveram, irrevogavelmente,
de se bater contra Marx, Engels e os demais representantes do Conselho Geral,
que ficava situado em Londres. Ao contrário dos anarquistas, os marxistas
acreditavam que era a ditadura do proletariado, sob a direção do partido de
vanguarda, a quem caberia a incumbência de reconstituir a sociedade num sentido
socialista.
Segundo o anarquista alemão, Marx teria herdado essa teoria
dos jacobinos e outros intelectuais vinculados à burguesia radical. A título de
exemplo, Rocker cita o livro “O Manifesto Comunista” escrito por Marx, em
pareceria com Engels, onde a idéia de ditadura do proletariado parece como
sinônimo da tomada do poder do Estado por um partido político, que existiria
até que os conflitos entre as classes desaparecessem completamente.
Como o despotismo do método corresponde ao despotismo da
ação, não demorou muito para Marx conseguisse expulsar os anarquistas da
Internacional. Foi justamente o que aconteceu no Congresso de Haia em 1872,
onde o Marx conseguiu, através da manipulação dos votos, obter a maioria
necessária para expulsar Bakunin, Guilhaume e outros anarquistas, neutralizando
desse modo a influência dos mesmos sobre o movimento operário europeu. Após o
fim da Internacional, que depois de transferida para Nova York perdeu qualquer
relevância política, e a destruição da Comuna de Paris, fato ocorrido no ano
anterior, o conselhismo foi completamente olvidado.
Somente em algumas décadas posteriores, com o surgimento do
sindicalismo revolucionário francês, que, aliás, estava profundamente
impregnado pelo anarquismo, que tal situação haveria de se alterar. Como indica
Rocker, a atividade dos anarquistas Fernand Pelloutier, Emile Pouget e George
Yvetot junto ao movimento operário no período de 1900 a 1907 assumiu uma
importância fulcral para a retomada e reatualização da teoria e prática
conselhista.
Resguardadas as devidas diferenças históricas, o nosso autor
aduz que foi essa mesma idéia que serviu de inspiração para os operários e
camponeses russos nos primórdios da Revolução de 1917, até que ela fosse
totalmente subordinada e substituída pela ditadura do proletariado.
Refletindo sobre as causas que levaram a experiência
socialista na Rússia ao seu malogro, Rocker sustenta que para além do pouco
desenvolvimento industrial, isolamento frente às outras nações capitalistas e,
somando-se a isso, avanço da reação burguesa, existe um outro fator que, a
despeito da sua profunda importância, fora mencionado apenas superficialmente
nas análises até então promovidas: a união entre os conselhos e a ditadura.
De acordo com o anarquista, esse casamento, já destinado ao
divórcio, não podia “engendrar outra coisa senão a desesperadora monstruosidade
que é a comissariocracia bolchevique”. Para Rocker não podia ser de outro modo,
pois o sistema dos conselhos não suporta qualquer ditadura. “Nele se encarnam a
vontade da base, a energia criadora dum povo, enquanto na ditadura reinam a
coação de cima e a cega submissão aos esquemas de espírito de um diktat”
(p.77).
Consistente com o que havia colocado Kropotkin em sua “Carta
aos Trabalhadores do Ocidente”, Rocker acredita que na Rússia os socialistas
estavam “aprendendo como não se deve implantar o comunismo”. Assim como o
mestre, o pupilo inferia que a teoria de Lênin a respeito da necessidade de um
regime ditatorial no período de transição até o desaparecimento da sociedade de
classes lhe parecia assaz falsa. Pois, embora a ditadura pudesse destruir uma
sociedade , jamais poderia ser útil para criar uma, algo que só os conselhos,
com seu aspecto construtivo, poderiam fazer.
E antevendo as críticas que poderia receber, Rocker afirma
que a hipótese segundo a qual a ditadura do proletariado constitui um caso a
parte, por se tratar da ditadura de uma classe, não merece nem sequer
refutação, pois não passa de um sofisma para enganar tolos. “É inconcebível”,
afirmava ele, “falar em ditadura de uma classe, visto que se trata sempre, no
final das contas, de um certo partido, que se pretende falar em nome da
classe”(p.90).
Para além da substituição dos conselhos livres por órgãos
estatais, a ditadura bolchevique deu início a uma processo de perseguição a
todos os revolucionários não comunistas, que ironicamente eram, em sua quase
totalidade, defensores do sistema de conselhos. Se antes, estes eram a glória
da revolução, agora não passavam de traidores a serviço do capitalismo
internacional.
“Dessa suficiência autoritária de um pequeno grupo que busca
encobrir sua sede de poder” (p.46) resultou a destruição da comuna
autogestionária de Makhno na Ucrânia em 1918; a repressão aos marinheiros de
Kronsdat em 1921 e o encarceramento e assassínio dos anarquistas,
sindicalistas, socialistas revolucionários ou de qualquer outra corrente da
esquerda que ousasse reivindicar o fim da comissariocracia do partido e uma
maior atuação dos conselhos na construção do socialismo.
Após o findar do período do “Comunismo de Guerra”, os
conselhos já se encontravam totalmente destituídos da sua autonomia e
completamente privados dos seus autênticos defensores. Segundo Rocker, esse foi
o primeiro passo para que a guinada da política de Lênin rumo a direita se
realizasse por inteiro. “Pois, com a implementação da Nova Economia Política
surgiu à crença de que seria preciso “fazer com que o capitalismo fosse
dirigido nas águas do capitalismo de Estado”, já que “o socialismo só poderia
se desenvolver a partir deste” (p.454).
Comparando a Revolução Francesa com a Revolução Russa, Rocker
lembra com propriedade que a política de Robespierre conduziu a França a
ditadura militar de Luis Napoleão Bonaparte. “Mas” questiona Rocker “ a que
abismo a política de Lênin e seus camaradas conduzirá a Rússia?” (p.39).
Embora o nosso autor não pudesse ainda responder essa
pergunta, haja vista que o seu livro havia sido escrito no calor no dos
acontecimentos, ele pressentia com uma intuição quase certeira que esse abismo
não poderia ser outro senão o totalitarismo estalinista.
Para concluir essa resenha gostaria de me ater a dois
aspectos do livro de Rocker: o historiográfico e o político.
O primeiro está relacionado ao fato que graças a livros como
o de Rocker, a historiografia pôde ir alé m da interpretação dada pelos
partidos políticos que se pretendiam os donos da verdade científica e, com
isso, mostrar o outro lado da Revolução Russa: a atuação dos conselhos
operários. O segundo se vincula a constação de que assim como aconteceu na
Revolução Russa, hoje em dia a esperança de mudar o mundo não pode vir de cima,
por meio do Estado, até mesmo por que esse se mostra incapaz de fazê-lo. Essa esperança
deve vir de baixo, através das próprias organizações que os movimentos sociais
contemporâneos têm demonstrado a capacidade de criar.
Sob este duplo aspecto, o livro “Os Sovietes Traídos pelos
Bolcheviques” permanece ainda extremamente atual.
Notas
*Resenha
originalmente publicada em Eidos info-zine, Patos de Minas, nº22, Jan, 2010.
Disponível
em:http://wwweidosinfozine.blogspot.com/2010/01/eidos-info-zine-22_25.html
Thiago
Lemos Silva é mestre em História pela UFU ( Universidade Federal de Uberlândia)
e membro do Coletivo Mundo Ácrata.