terça-feira, 21 de agosto de 2012

“No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho”: a crônica da luta de um psicólogo ambiental pela acessibilidade urbana em Patos de Minas



        A cidade não pára! A cidade está em constante processo de desenvolvimento. Afinal de contas, somos até mesmo conhecidos nacionalmente como a capital do milho e com isso atraímos todos os anos milhares de turistas para a nossa amada Patos de Minas em sua festa mais esperada, a Fenamilho. Somos também conhecidos pela educação de nossa cidade, sim pela educação. Temos diversos cursos de graduação e técnicos dentro do âmbito privado e público. A cidade conta ainda com indústrias e micro- empreendimentos que influenciam e impulsionam a economia. Em algumas praças, cuidadosamente, arborizadas, inclusive, há a existência de aparelhos de fazer ginástica a fim de que a população possa cuidar da sua saúde. Temos até mesmo uma rede de TV local, onde se transmite notícias jornalísticas, programas de entretenimento e outras variedades. Com tudo isso, não seria nenhum absurdo aparecermos em cartões postais como “Patos-Paris”, a cidade luz, a cidade harmônica, a cidade em que todos vivem felizes.
Bom, se você leu estas poucas linhas e não ficou nenhum pouco indignado ou não sentiu certo grau de estranhamento é porque, então, você definitivamente não conhece a realidade de Patos de Minas, ou quem sabe conhece apenas a realidade que mais lhe convém. Falo isso porque há tempos atrás fui convidado por uma empresa que avaliava o grau de satisfação dos moradores em relação ao transporte coletivo da referida cidade. Assim, comecei a perambular pela cidade a fim de observar crianças, jovens, adultos, idosos, enfim as mais diversas categorias através do principal meio de transporte que lhes são oferecidos: o ônibus.
Após observar, o próximo passo foi o de selecionar, aleatoriamente, cerca de 100 pessoas para tomar conhecimento do grau de satisfação quanto a este meio de transporte. Resultado: grande parte dos entrevistados estavam consideravelmente satisfeitos com o sistema, ah já ia me esquecendo... havia apenas um requisito que não agradava o público: o preço da passagem, tido como exagerado demais.
Então, estava tudo maravilhosamente certo. Eu já poderia concluir as minhas observações e entrevistas e o próximo passo seria colocar tudo no papel e entregar para quem me contratou e voltar para casa me sentindo um bocado feliz com mais um trabalho realizado, afinal de contas eu acabara de me formar em psicologia e já tinha conseguido este trabalho. Pronto, só faltava eu voltar para uma cidadezinha próxima à Patos, onde moro com minha família. Tão simples assim. Mas, como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade: no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho... E o pior é que tinha mesmo. Afinal de contas a vida não pode ser assim tão cor de rosa. Foi que de repente eu tropiquei, cai e rolei pelo chão. Olhos cerrados e que aos poucos foram sendo abertos, até me deparar com outra realidade, até então conhecida por mim, mas nunca que afetasse de maneira tão forte a minha subjetividade.
Estava certo, que quando eu estava observando os ônibus  eu sempre via uma ou duas, quem sabe três ou quatro pessoas que faziam uso de cadeira de rodas pelas ruas e avenidas da cidade. Nunca pegavam coletivo, mas, incrível, essa questão não me tocou e se tocou talvez tenha passado por mim despercebida em demasia. Claro, essas pessoas não usavam os coletivos, simplesmente, porque os mesmos não eram acessíveis. Não possuíam rampas ou elevadores ou qualquer dispositivo que pudesse permitir com que cada um circulasse, livremente, pelos quatro cantos da cidade.
O pior de tudo é que, eu enquanto psicólogo, não tinha tido sensibilidade o suficiente para me dar conta de que o ambiente é um espaço produtor de desenvolvimento psicológico, emocional, pessoal, profissional e comportamental. Somente depois que este ambiente passou a interferir em minha subjetividade, uma vez que tive que passar a fazer uso de cadeira de rodas, depois de ter fraturado alguns cês da coluna vertebral, é que pude perceber o quão ineficiente era o principal meio de transporte de Patos de Minas. Meio abalado com tudo isso e me sentindo um péssimo profissional, talvez porque nunca fui atento às questões sociais, afinal de contas, sempre me interessei pela área estritamente clínica e individual, fiquei recluso por algum tempo.
Passaram-se dias, meses que se arrastaram em anos e foi, então, que eu decidi fazer um curso em psicologia ambiental, a fim de ter um bocado de conhecimento para de alguma forma poder intervir na realidade que, há alguns anos me passou tão despercebida. Após ter concluído o curso fui a procura da mesma empresa de ônibus da qual eu já havia trabalhado há algum tempo, como vocês puderam notar no decorrer destas linhas. Na verdade, eu gostaria de mostrar para esta empresa um projeto que desse acessibilidade aquelas pessoas que fizessem uso de cadeira de rodas, fosse de modo temporário ou permanente (como se tornou o meu caso). A primeira resposta eu já até poderia ouvir em meus sonhos: não, acreditamos que isso no momento não tem relevância. Foi bem assim que aconteceu. Então, eu pensei: e se eu entrasse em contato com a comunidade, com as pessoas que fazem uso de cadeira de rodas, enfim com todos aqueles que estiverem interessados em construir uma realidade mais justa, digna e humana de fato. Bem, talvez seja possível. Ainda havia esperança.
Retornei a Patos de Minas e comecei a via cruzes. Via cruzes porque comecei a me deparar com o pior. Sim, o pior. Na medida em que comecei a circular pela cidade, notei que a mesma não possuía infraestrutura alguma para que uma pessoa com cadeira de rodas pudesse se locomover como um cidadão. Os passeios repletos de buracos, os prédios públicos e privados possuíam degraus que mais me pareciam a Muralha da China (um pouco de exagero, às vezes até que faz bem), para entrar nos coletivos eu tinha que contar com a ajuda de umas três... Não... quatro pessoas.
A situação não poderia continuar como estava. Comecei a escrever um projeto que falava da importância de reestruturar o espaço físico das calçadas, dos prédios e coletivos. Mas, não bastava apenas escrever este projeto era essencial, acima de tudo buscar apoio junto com a comunidade e também das pessoas que faziam uso de cadeira de rodas. Conversei com algumas pessoas engajadas com a política comunitária em seus bairros, com os sindicatos dos lojistas, com a associação de deficientes de Patos de Minas (mais conhecida como ADEFEPAM), fui em algumas faculdades e universidades com o intuito de falar sobre o assunto com o público estudantil. Paulatinamente, nos transformamos de gatos pingados a uma infestação de gente sedenta por direitos humanos que até então haviam sido esquecidos. Mobilizávamo-nos e saiamos pela cidade em pequenos motins, conversando com as pessoas, entregando folhetins explicativos. Não demorou muito e eu estava discursando na imprensa local, as redes sociais também passaram a apoiar a nossa causa.
De tanto tentar, de tanto nos mobilizarmos chegamos até a prefeitura e ao dono da empresa de ônibus local. Depois de horas e dias de conversa conseguimos mostrar o nosso projeto que consistia em adaptar calçadas, prédios e é claro os coletivos para que qualquer ser humano, dentro de sua subjetividade, pudesse se locomover pela Patos-Paris.
O resultado de tudo isso não foi muito animador, todavia, representou o inicio de uma pequena história que pode ter continuidade se as pessoas começarem a agir de forma mais politizada. Como é de se esperar, as principais calçadas foram adaptadas, sim, as principais, pois o que importa é o que será visto e mostrado pela mídia. Alguns comerciantes aderiram ao nosso projeto, outros não. Comece a andar por Patos de Minas e você logo irá perceber do que eu estou falando. Os coletivos? Ah, sim, estava faltando eu falar deles. Alguns foram adaptados, de modo que se eu quiser pegar um ônibus para ir até a rodoviária para voltar para minha cidadezinha, tenho que esperar, aproximadamente, uma hora, ou quem sabe contar com a sorte para que um coletivo com acessibilidade passe até o ponto onde eu esteja. Isso porque em quatro rotas há apenas um coletivo adaptado.
Como diria, Theodor Adorno, citado por Antônio Ozaí em seu instigante "Educar contra a barbárie", temos que parar de banalizar e naturalizar problemas que são de ordem social e sair de nossos mundinhos acadêmicos. Isso, talvez seja o primeiro passo para conhecermos a realidade que nos circunda mais de perto e, assim, tentar transformá-la.Portanto, como educadores, (ou psicólogos) temos responsabilidades políticas e ao invés de nos perdemos em discussões intermináveis e estéreis; de nos afogarmos em nossa própria vaidade; de gastarmos nosso precioso tempo na mesquinhez do emaranhado burocrático e na luta pelo poder de controlar os meios de prejudicar o outro; de nos desgastarmos em picuinhas e academicismos; eduquemos no sentido da auto-reflexão crítica e nos dediquemos à tarefa de esclarecer, para que se produza um clima intelectual, cultural e social que não permita a repetição da barbárie. O primeiro passo é repensarmos nossas práticas como educadores e nos indignarmos com tudo que nos lembre isso …




Fernanda Caroline de Melo Rodrigues é graduada em História pelo Unipam (Centro Universitário de Patos de Minas) e  graduanda em Psicologia pela mesma instituição.


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